TRANSIÇÕES

Eu tenho que correr para pegar o ônibus ou, caso contrário, chegarei atrasado para a aula na próxima escola.

Esse calor de hoje sufoca, está pior a cada dia. Apressarei o passo, já que os semáforos nunca ajudam, parece que adivinham quando eu preciso atravessar a avenida.

Quando chegar em casa devo lembrar de colocar o lixo para fora, pois hoje é dia de recolhimento. Se bem que, quando chegar, bem provável que o caminhão já tenha passado.

O Sinal vai achar de fechar agora.

Nossa, que grafite lindo! No muro lá de casa, bem que queria fazer assim. Mas, nem o jardim ainda eu fiz.

Já abusei esse cheiro de óleo na praça. E junta com a sede, piora!

– Senhora, quanto custa a água mineral?

– Dois reais, meu filho.

– Me dê uma garrafa, por favor (...). Não! Prefiro quente mesmo.

O povo acha estranho quando peço a agua natural. Me sinto como se fosse de outro mundo. E esse ônibus que não quer passar logo e, quando vem, é lotado. Acho que vou esperar o que vem com ar-condicionado. Mas, acho que aquele serve para mim.

É, não irei nesse! Está lotado e sem ar-condicionado. Acredito que o outro ônibus esteja próximo.

Espero que venha logo, ou chegarei atrasado. Detesto chegar em cima da hora.

Ah, lá vem! Vou logo mais para a frente da calçada, ou o motorista me deixa. Da última vez foi assim.

(Ônibus chega, para, e os passageiros descem, outros sobem)

Eu como sempre sou o último a entrar. Onde está meu passe estudantil? Não lembro em qual bolso da mochila eu coloquei. Ou está no bolso da calça jeans? Onde está? (...) Ah, encontrei!

Meus elfos! É ele!

Nossos olhares se cruzaram. Parece que o tempo parou por agora. Que nó na garganta. Faz tanto tempo.

– Ei, você! Já pode passar!

– Desculpa, senhor cobrador.

Eu sento ao lado dele? Eu falo com ele? Tem uma cadeira do lado dele. Eu volto a olhar para ele? Será que está olhando para mim? Vou levantar a cabeça discretamente. Estou caminhando a passos lentos, por quê?

É, ele não está olhando. No mínimo não quer que eu sente ao seu lado, talvez nem mesmo que nos falemos. Ai, que angústia. Nunca me senti assim. Acho que vou enfartar.

– Boa noite!

– (Caraca, ele está falando comigo. Ele falou!) Bo-booa noi-tee. Tudo bem?

– Sim! Rsss

– Rsss. (Vou sentar lá atrás mesmo. Melhor que eu faço)

Meus elfos, eu encontrei ele. Kkkkkkkkkkkkk Ele está bonito com esse óculos. Está com cara de sério, intelectual e estudioso. Combinou com ele. O rosto está mais “limpo”, sem aquelas espinhas que tinha antes. É, ele está mais bonito. O que será que está passando na cabeça dele? Não, para! Tenho que dar conta do que se passa em minha cabeça, das minhas emoções e ações. Não tenho esse poder de interferir na forma de pensar do “Outro”, e devo cuidar das minhas expectativas. Ele é um mundo completo, eu sou outro, e devo cuidar do meu terreno.

Ele afastou para a poltrona ao lado da janela. Meus elfos? Será que ele quer que eu sente lá? E se não for? Se me tratar mal? O que eu devo dizer? Ah, nem sei se devo ir. O que eu faço? Ele é tão imprevisível. Sempre foi. Mas, caso eu vá, se ele me tratar mal, eu volto para meu lugar. Pior é viver no “e se?”, se amargurando submerso num mundo de possibilidades que depois serão criadas na mente e me tomarão o sono. Principalmente nessa minha mania louca de reviver o passado, o recriando nas inúmeras possibilidades, estas que jamais serão concretizadas. Mas, eu sento ou não. Ah, eu vou!

Vou mexendo na bolsa, para parecer que estou procurando algo, distrair as atenções. Meus elfos, o que faço? O que digo. Cheguei, vou sentar. Poxa, ele nem mexeu a cabeça. Está imóvel. Acho que vou voltar para meu lugar.

– Tu quer um bombom?

– (Melhor jeito dele de começar uma conversa kkkkkkk. Tão imprevisível, como sempre) Eu?

– Tem outra pessoa aqui do meu lado, ou sentada em teu colo?

– Nossa! Não precisa essa resposta kkkkkkkkkk

– Quer ou não?

– Quero sim. Tu e tuas imprevisibilidades.

– Como assim?

– Ah, deixa pra lá.

– Não! Começou, continua. Tu nunca deixou essa mania de iniciar as conversas e não terminar? Ou fala pouco, ou fala muito. Tu és extremista.

– Nossa! Ainda acha isso de mim?

– Sempre achei. Só disse agora, porque em menos de cinco minutos, tu só me mostraste o reforço disso.

– Depois de um ano, acho que eu mudei muito. Assim como você também. Talvez, e bem talvez, algumas “manias” não tenham sido deixadas de lado, ou revistas. Mas, mudamos muito. Aliás, eu mudei. Só posso falar por mim. Eu e essa mania de querer fazer da minha fala, a fala do outro. Preciso parar com isso. Cada um é responsável por seus discursos, em pequena ou grande medida.

– Pois é. Acredito que esse seja um grande problema, querer falar pelos outros, sem antes consulta-los. Ou mesmo, querer que os outros ajam de acordo com a forma que pensas ser a melhor forma.

– Jogue na cara. Kkkkkkkkkkkkkkkkkk

– kkkkkkkkkkkkkkkkkk só falei verdades.

– Hum rum. Sei perfeitamente o encaixe disso.

– Não vai perguntar como eu estou?

– Eu perguntei e você só respondeu “Sim” e nem retribuiu a pergunta.

– Retribuir só para cumprir a tabela dos bons modos?

– Que seja. Acho que ao menos essa retribuição eu mereço.

– Não falei que você não merece. Indaguei sobre o cumprimento da tabela, que tu sabes que não é de mim fazer esse cumprimento.

– Enfim! Você disse que está bem. Isso que importa. Como vai o curso de psicologia?

– Como tu sabe que estou fazendo psicologia?

– As pessoas, até hoje, fazem meio que questão de falar sobre ti, para mim. Embora eu esboce pouca importância.

– Ah! Obrigado! Eu não sou importante. Palhaço!

– kkkkkkkkkkkk Calma, não foi isso que eu disse.

– Não parece. Tu continua estressadinho, fazendo leitura literal das coisas. Te acalma. Arrogante.

– kkkkkkkkkkkk Olha quem fala. Kkkkkkkkkkkkk foi para rir?

– Não! Só acho meio estranho isso. Tu devias aprender a tratar melhor os outros. Ou, na verdade, estou errado. Os “outros” você trata bem. Tu nunca perdestes a mania de me tratar mal. Bem típico dos últimos meses que passamos juntos.

– Quer dizer que eu te tratava mal? Tu achas mesmo isso?

– Na verdade, nós nos tratávamos mal. Nós estávamos fazendo mal um ao outro. Foi por isso que nos separamos, não?!

– (Silêncio)

– (Silêncio)Tantas coisas que eu queria te falar.

– Sobre o quê?

– (Silêncio. Desce saliva na garganta seca. Ele quer mesmo que fale)

– Não quer mais falar?

– Querer eu quero! Sempre quis. Pena que não tivemos oportunidade. Opa, desculpa! “Eu tive oportunidade”. Não sei se vale para você. Na verdade, fiquei com muita coisa entalada, logo depois daquele último “rsss” no whats app. Embora, tenha consciência que tenha sido o melhor para nós dois, e nisso tenho como dizer “para nós dois”.

– Concordo com você. Foi o melhor para nós dois. Foi preciso seguir longe para amadurecer, crescer... Não que eu seja o super maduro, mas deu de aprender outras coisas.

– Digo o mesmo. Foi preciso tomar rumos diferentes. Eu tinha meus problemas, você os seus e, não sabendo lidar com eles, transportávamos eles um para o outro, ao ponto de culpar o “outro”, por problemas que eram resultado de outras coisas. Embora, eu tenha que confessar que, a forma como eu tentava ajudar não era a das melhores. Eu te pressionei muito, cobrei muito, falei muito e exigi muito, num momento que você só precisava ser ouvido. Mas, isso tudo também me fez muito mal, eu também fui pressionado, também saí machucado e perdurou por muito tempo. De longe quero fazer um joguinho de culpabilização, não, essa não é a intenção. Mas, estamos aqui, nesse ônibus, depois de um ano sem olhar um no rosto do outro, tipo agora, onde eu falo olhando para a frente, e você olha para fora da janela. São tantas coisas presas, sufocando, que nem coragem de olhar um nos olhos do outro nós temos. É medo, vergonha, culpa, dor? Não sei. Só sei que estou com algo entalado na garganta.

(Vou abraçar ele... Ele retribuiu)

– Eu te peço desculpas.

– Sou tão egocêntrico que nem pronunciei essas palavras. Falei, falei e as desculpas não viera.

– Deixa eu falar. Tu e essa mania de se apossar da fala e não dar espaço para os outros. O tempo tem que te servir pra isso.

– Desculpa.

– Sabe, eu também tenho noção de tudo isso. Te peço desculpas por, durante determinado momento, te culpar como sendo causa de problemas que não eram motivados por você. Só depois me dei conta do quanto fui injusto. Na verdade, estava tão sufocado, tão desestabilizado, angustiado e pressionado, e você também era parte disso, que me perdi, me perdi de mim mesmo, o que é pior. Das piores percas, pois a vida perde o sentido. Estava tão perdido que tentei calar uma dor que não sabia o motivo. Tentei da pior forma possível e te pressionei até nisso. A vida tem dessas coisas, coisas vão acontecendo, você vai vivendo, engolindo os “sapos”, engolindo palavras, sentimentos e emoções. Engole sílabas, palavras, frases e quando percebe está engolindo textos inteiros que vão se acumulando, acumulando e fazendo você perder o controle da situação toda e, de tão perdido, você perde a capacidade de se autogovernar. (Silencio)

– (Silêncio) Eu também errei muito. E por errar, deixei com que nos perdêssemos de nós, quando poderíamos ter nos ajudado mais. Mas, as dores que apertavam, era maiores e, motivadas por questões que de longe eram relativas a nós, à nossa relação. Eu também me perdi de mim, por diversas vezes. Me deixei mergulhar por demais na história toda ao ponto de perder minha identidade. Ao ponto de uma noite, ao colocar a cabeça sob o travesseiro, não saber quem mais eu era, ou quem eu gostaria de ser. Me dei conta que o outro precisa de um espaço, porque eu também preciso do meu, pelo bem da minha saúde mental. Tentei preencher um vazio que carrego dentro de mim, colocando você nesse espaço. Mas só deu certo um tempo, porque o seu lugar não era nesse buraco, nem o seu, nem o de ninguém. É um vazio que deve ser preenchido comigo mesmo, com minha história, que deve ser reinterpretada. Eu sou muito carente. E...

– kkkkkkkkkkkkkkkkkk Nem precisa dizer que é carente

– kkkkkkkkkkkk Palhaço kkkkkkkkk Estou falando sério.

– kkkkkkkkkkkkkk Desculpa. Continua.

– Eu pensei bem sobre como as coisas entre nós se desenrolaram. Sabe, a forma como eu vivi e percebi o nosso amor. Tem algo em mim que eu devo resolver antes de qualquer coisa. A forma como eu penso o amor. Isso remete a forma como me relacionei com meu pai e mãe. Não colocando culpa neles, pois só reproduziram um processo que tem uma história bem mais longa. Sabe, sempre te falei da forma como me relacionei com eles e como é ainda hoje. Sempre foi necessário eu correr atrás, insistir, procurar dar carinho, sempre tomar a iniciativa, aquela coisa de ter que conquistar, sabe? Assim se formou minha concepção de amor, que para tê-lo, eu preciso insistir, conquistar ou algo do tipo. Daí, quando vem alguém como você, dando amor, carinho, afago eu me distancio, não me envolvo tanto, porque já está ali, de ‘mão beijada”, e no final perco tanta coisa boa e bonita, por causa de uma concepção errada de amor. E faço e falo bobagens, vou estragando, afastando e destruindo a outra pessoa. Ao passo que fico fissurado em quem não me quer, em quem me humilha, quem não se importa. Isso é doentio, sabe? Não me faz bem, porque eu sofro muito por isso e perco ótimas oportunidades de respirar livremente, em paz e com alguém que queira estar comigo. Nossa relação foi um reforço disso. E sei que, enquanto não resolver essas minhas neuras, concepções, enraizamentos, não poderei ser feliz, tendo uma vida amorosa minimamente saudável. É um buraco que deve ser preenchido comigo mesmo, com autoestima, conhecimento sobre si e vontade de ser melhor. Não sei como tu me aturou o tempo todo que nós compartilhamos dias. Kkkkkkkkkkkkkk

– É, tu é chato pra caralho. Também me pergunto como aturei kkkkkkkkkkkkkkkkkkk (Silêncio) Eu aturei porque eu te amava e estava disposto a fazer de tudo por nós dois, ao ponto de me anular, pra te fazer bem.

– (Silêncio)

– (Silêncio)

– É...

– O quê?

– Não ama mais?

– Já amei.

– Precisamos aprender que as pessoas têm data marcada nas nossas vida, né? Seja pelas consequência das escolhas tomadas, seja por meio da morte. As pessoas sempre partem, nós sempre vamos partir. É como na música da Cássia Eller “O pra sempre, sempre acaba”. É difícil lidar racionalmente e emocionalmente com isso, uma vez que somos socializados em ideias de infinitude, presença infinita, amor infinito do “felizes para sempre”. Nada mais trágico e prejudicial que esses “felizes para sempre”, porque colocam na nossa cabeça essa ideia de alma gêmea e eternidade como se fosse algo que acontece por essência, e faz esquecer o caráter de construção das relações. Faz com que na primeira crise, questionemos nosso amor para com o outro.

– Foi doloroso aceitar que chegou a data da sua partida na minha vida. Apesar de sempre ter um pedaço de ti aqui comigo, nas lembranças de tudo que vivenciamos e que eu tento retirar aprendizagens, num processo intermitente de ressignificação de todos os acontecimentos. Na tentativa de fazer da mágoa, algo produtivo e bom, pelo bem da minha saúde mental.

– Eu não soube construir um amor contigo, ou não soube retribuir as demonstrações.

– Por que tua fala é de culpa? É como se isso tudo fosse um fardo pra ti.

– E não é?

– Não! É o que você disse, que as pessoas têm data marcada. Nós somos dois seres em processo de autoconhecimento. Nos esbarramos, vivenciamos experiências, construímos uma história, fomos importantes um para o outro durante um tempo, nos ajudamos, nos destruímos e a vida teve que continuar. E ela vai continuar. Você e eu seguimos rumos diferentes, porque chegou a hora que o diálogo não era mais possível. Não existem culpados, porque simplesmente escolhemos caminhos diferentes e nessas diferenças não haviam possibilidades de seguirmos juntos. Nossas escolhas eram bem distintas, ao ponto de não poderem se encontrarem. Foi preciso partir para estancar aquele processo de dor e injustiça reciprocas. Estava sendo injusto com nós mesmos. Somos infantis demais, egocêntricos e manipuladores, ao ponto de tentar controlar o outro para que percorresse um caminho que não era dele. Nós estávamos adoecendo um ao outro. Você seguiu o seu e eu o meu. Já parou pra pensar no tanto de coisas boas que conquistou depois do nosso término? Tudo que conseguistes e que, se estivéssemos juntos, não terias conseguido. Foi melhor assim.

– (Silêncio e Olhei para ele, bem no fundo dos olhos e as lágrimas desceram. Ele então me abraçou. E me dei conta do quanto estava com saudades daquele abraço, mas consciente que ele não era mais meu e que é melhor assim. Não é mais saudável nos pertencermos.)

– Eu só quero a felicidade para nós dois.

–Eu sempre que ouço a música “Depois” da Marisa Monte me lembro de nós dois. “Meu bem, vamos ter liberdade, para amar à vontade sem trair mais ninguém. Quero que você seja feliz. Hei de ser feliz também, depois.” E toda vez me dou conta do quanto estávamos sufocados, do quando estávamos traindo o nosso próprio eu, uma vez que tirávamos a liberdade do outro e a própria liberdade, por nos jogarmos de mais na vida um do outro, por causa da bolha que criamos entorno de nós, alimentada pela ilusão de que éramos dependentes um do outro e que só conseguiríamos viver plenamente se estivéssemos vivenciando essa relação, mesmo que estivesse fazendo tão mal. É, você tem razão, obrigado. Era preciso partir para poder viver de verdade.

– Precisamos nos perdoar para seguir. Eu estou tentando ressignificar tudo para aprender com a história toda, como já te falei. O passado não pode ser mudado e foi vivenciado dentro das possibilidades que tínhamos enquanto ser humano naquele momento. Agora é seguir, pois temos tantas coisas para vivenciarmos.

– Eu estou mais leve. Kkkkkkkkkkkkkkkk É, te encontrar me fez bem.

– Nos fez bem, então. Gostei de te ver.

– Estava precisando ter essa conversa. E te desejo toda felicidade do mundo.

– Não te desejo toda a felicidade, porque as outras pessoas, e eu, merecemos vive-la também. Desejo o suficiente para que você seja feliz. E olha, tua parada está chegando. Kkkkkkkkkkkkkkkkk se passar, vai ficar longe para voltar para a escola, não?

– Elfos!!!! É verdade. Kkkkkkkkkkkkkkk

Nos abraçamos

– Tchau e foi bom te ver. Mas digo que não é saudável que voltemos a nos falar por redes sociais. Deixa os acasos acontecerem. Então, obrigado por ter feito parte da minha vida.

– Obrigado por ser especial. Tenho que ir kkkkkkkkkkkkkkkkk vou perder a parada kkkkkkkkkkkkkkk Beijos e tenho um carinho enorme por ti.

– Beijos e seja feliz. Tchau.

– Me despedi com um beijo e desci do ônibus. As coisas a partir daqui serão diferentes.

Texto de Weriquis Sales