O Mundo das Cascas.

Eu devia ter meus 10 anos e não era nada precoce, na verdade eu era ainda muito imaginativo e bem infantil para a minha idade. Digo isso hoje, na época eu me achava um adulto e talvez um tanto sábio.

Meu ego falava comigo com sentenças aprendidas nos livros de Julio Verne que eu já lia (quanto a literatura sim eu era precoce mas emocionalmente não). Eram frases de cientistas do século XIX, aventureiros em busca de descobertas cientificas e coisas do tipo.

Este meu lado era mais saliente quando eu era exposto a interagir com outras crianças da minha idade, apesar de parecer um garoto de dez anos eu me sentia e procurava falar como aqueles personagens que eu sempre lia. Eles eram muito melhores que eu no trato com estranhos, sabiam todo o código do jogo social, desta forma eu era levado a falar coisas que saiam direto dos livros. Me chamavam a brincar de algo que me faria expor minha fragilidade interior e eu logo me concentrava em outra direção: "Veja esta folha, já alimentou uma planta de luz!"

Logo percebi que existiam aqueles que viviam fora de si mesmos e outros que viviam dentro, era algo no olhar, os que viviam por fora pareciam ter um olhar de quem esta sonhando acordado e os que estavam presos dentro de si mesmos, trocavam olhares de prisioneiros, de quem olha de dentro e desta forma eu pensava...o caminho para entender os tipos psicológicos ainda iria demorar muito.

Logo eu formulei a tese de forma intuitiva que éramos (os seres) cascas habitadas, alguns se identificam com a casca em si e outros sabem que estão dentro de uma casca. Passei a dar pouco valor ou valor nenhum a quem achava que era a casca. Meu mundo a essa altura apesar da idade já era bem difícil, porque eu não conseguia formular estas questões em palavras, muito embora pensasse nelas diariamente.

Certa vez cai de paixão por uma colega de sala, a Tatiana, que devia ter os seus dez ou onze anos. Era uma forma de paixão muito ruim, porque não era logo identificável. Digo que era algo maléfico lembrando hoje de longe no tempo, pensar nela me incomodava e quase que doía embora eu não soubesse bem onde doía. Ficava com raiva mas assim que eu a via, logo se dissipava a sensação ruim e eu ficava como que hipnotizado pela imagem da garota.

Eu seria incapaz nesta época de tentar qualquer movimento em direção dela que não fossem apenas os meus olhos, me contentava em escrever o nome dela no caderno ou no chão em algum lugar obscuro do colégio religioso que eu estudava.

Reparei com o tempo que Tatiana era uma das pessoas que eram enganadas pela casca, eu não via sinal nela que desse a entender que ela sabia estar presa na casca. Ela brincava no pátio com as outras crianças de modo alegremente, era sempre alheia, seu ponto de atenção era sempre em alguma coisa fora de si mesma. Isso me deixou um tanto aborrecido.

Outras pessoas pareciam ser como eu era, um ser que habita a casca. Rodolfo era um destes, estudava em outra classe, lembro-me de um dia que tropeçou, (ele usava botas ortopédicas e vivia tropeçando) e seu material se espalhou pelo chão. Como havia chovido a maioria dos cadernos ficaram molhados, lembro-me que o seu olhar revelou o ser na casca, era um olhar que procurava certa cumplicidade, como se transmitisse um pesar pela situação vexatória e perguntasse ao final: Você entende a situação?

Sim havia um habitante naquela casca assim como havia também em Letícia, que usava um enorme aparelho de dentes que era preso para fora da boca. Estes são exemplos de pessoas que eu via como os que era cientes de sua condição, talvez não nas minhas palavras mas de modo similar.

Entendi de forma não muito definida que esse "defeito" (como eu pensava naquele momento) devia estar de algum modo ligado ao sofrimento em maior ou menor escala. Nem me ocorria que o "ser dentro da casca" era o próprio despertar da consciência e que muitos as vezes passam pela vida e não conseguem atingir este patamar tão elementar.

Certa vez Tatiana distribuiu convites pela sala, era para seu aniversario e seria em um sitio de propriedade de sua família. Para minha surpresa eu havia sido convidado também. Eu imaginava que os convites eram pensados, que cada amigo era analisado por ela e depois escolhido ou não. Foi uma decepção ver que isso não ocorria, que a letra com o meu nome tinha sido escrita por outra pessoa e que o próprio convite era muito impessoal.

Nesta época já estávamos estudando há uns seis anos juntos e entravamos na fase pré-adolescente, por volta dos doze ou treze anos. Eu continuava com meu amor platônico, bastante reprimido pois nessa época me parecia um tanto humilhante demonstrar essa "fraqueza", era assim que eu via o meu sentimento como algo horrível que me diminuía.

Meus pais ficaram contentes com o convite, a festa teria a sua área adulta e eles iriam se divertir da forma como os adultos se divertiam, conversando sem parar. Eu achei temerário, afinal o convite não era algo pessoal dirigido a mim, mas ao "colega de sala".

Outro fator que para mim foi um alerta, a festa iria começar a noite, as sete da noite. Para mim era quase horas de ir dormir, as coisas não pareciam obedecer a ordem correta das coisas. Senti um calafrio na estrada a caminho do sitio, estava frio e o lugar ficava entre montanhas cheias de altas arvores escuras.

Quando chegamos logo vi que as meninas estavam todas no jardim se divertindo do modo delas e meus colegas naqueles jogos violentos de pequenos homens que a todo momento precisam provar algo para o grupo. As meninas estavam com os cabelos arrumados e pareciam muito diferentes que na escola, usavam roupas elegantes e pareciam muito mais "ameaçadoras".

Tratei de ir logo me juntar aos meus.O pessoal estava jogando uma espécie de corredor polonês, alguns garotos ficavam de um lado e outros do outro no meio algum coitado tinha que atravessar segurando uma bola, valia tudo para tirar a bola do cara. Era uma pancadaria sem fim.

Logo as mães apareceram reclamando do jogo e fomos ordenados a ir para o quintal e parar com o "empurra-empurra".

Assim fizemos, tantos os garotos como as meninas. No quintal existia um rancho e uma piscina alem de uma área interna da casa toda em vidro onde estavam os adultos conversando. Foi neste momento que vi Tatiana e ela estava muito bonita, logo fiquei cativo de sua magia feminina.

Eu não tirava os olhos dela e me sentia ameaçado. Os sentimentos que me assolavam eram muitos e contraditórios, eu parecia que ia ser engolidos por eles e ela era culpada...mesmo assim a fascinação minha era sem limites.

Continuei minhas brincadeiras com meus amigos, mas mantinha os olhos ancorados nela. Tive a oportunidade de vê-la rindo e interagindo com as outras meninas como nunca vira na escola.

Cheguei a conclusão que aquilo não podia ficar assim, eu tinha que fazer alguma coisa e meu grande passo seria em algum momento dizer a ela as seguintes palavras: Eu gosto de você. Era simples expressava o meu sentimento e eu achava que com a coragem necessária eu seria capaz de dizer isso a ela. Meus amigos invisíveis me ajudavam, eram os personagens dos livros que vinham ao meu auxilio me conduzir naquela tarefa difícil.

Fomos pegos de surpresa quando uma musica começou a tocar, era uma mocinha que nos chamava para dançar, era umas destas que não esta dentro da casca mas acha que é a própria casca. Eu sabia porque ela não tinha pudor nenhum em vir remexendo o corpo em movimentos suspeitos e batendo palmas. Todos foram alegres para o rancho onde estavam as luzes de pista de dança (foi a primeira vez que vi).

Caminhei para o rancho como quem caminha para ser enforcado ou vai a guerra. Estava armado em minha frente o circo dos horrores, uma situação nova e que eu não tinha nenhum tipo de controle sobre ela. Meus colegas aos poucos foram formando pares com as meninas. Era moda dançar "musicas românticas" e isso criava um clima que me deixou profundamente mergulhado em minha casca. Eu estava no submundo de minha mente. Estava trazendo a mente todo o tipo de lugar seguro dos livros, dos meus brinquedos, dos desenhos da TV e personagens de historias em quadrinhos.

O pior momento foi quando meu estado de transe foi interrompido pela mocinha que havia nos chamado, ela de algum modo ficou incomodada com meu alheamento e veio me buscar pelas mãos para a pista de dança. Ela me puxou e horrorizado fugi correndo daquele lugar, atravessei o quintal e fui me esconder entre uma plantas de folhas muito largas.

Foi no banco que havia entre estas plantas que minha infância morreu. Eu vi neste banco um casal: Tatiana e um colega meu se beijando como nos filmes.

Fiquei estático e muita coisa se passou em minha mente, algumas referentes as coisas que eu conhecia outras misteriosas que eu somente podia tentar adivinhar e de modo muito deformado.

Minutos depois eu estava entretido lendo uma revista em quadrinhos que encontrara na sala onde estavam os adultos. A vida seguiu seu rumo...

Jose de Assis Carvalho
Enviado por Jose de Assis Carvalho em 25/03/2018
Reeditado em 25/03/2018
Código do texto: T6289919
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