A INDIVISA

José Augusto sabia que não precisaria mais de Abelarda. Ela que fora já um apêndice, uma muleta imaginária em que a colocava como num primeiro plano para depois ir buscá-la, e lá estava ela, ao fim, fenecida.

Por nenhum verão, nenhum caminho no parque ou qualquer estação a procuraria mais, a que sempre lhe faltava sem nunca ouvir a voz dela, a que sempre tentara substituir por outra, em vão, quando não mais o satisfazia, agora se soltando da engrenagem da roda infinita e sendo posta fora de uso numa prateleira de mecânico que ele se tornara.

Nenhum halo sobre sua cabeça se abriria, nenhum poço onde pudesse deixá-la, ocultá-la, ela que em ausências crescia, se avolumava em seu imenso rosto pálido sobre ele, sobre os passos de seus dias. A bolha estourava e lá ia ela --- a imagem, o objeto, o lastro do que poderia ter vivido --- lá estava ela a rodopiar no ar, se sacudir pelo vento e se desfazer no chão, como um pedaço de borracha.

Não a recolheria mais, a antiga, a onipresente morta, sempre a divisá-lo em sua casa, no escritório, como um fantasma incandescido e imóvel a lembrá-lo de que não, não vivera, não amara a quem tinha querido.

Seu broto recém-nascido em esperança de afeto se desmembrava do pé e ia apodrecer entre as folhas viscosas daquele outono úmido de flores e folhagens, ramas entretecidas de ciprestes e trepadeiras.

Não seria seu e não seria dele --- a única a quem se voltava ainda, passados meses, outras estações de semeadura, plantio e colheita. Não lhe seria a companheira, não trocaria palavras, frases, ensinamentos em frente ao vinho, aos queijos e à lareira lépida.

Não o aqueceria, caminhando a seu lado e em seu próprio rumo, olhando para si mesma. Não dividiria com ela seu amor-próprio nem sua rotina, seus trabalhos vários, inúteis, sua solidão. Sequer dela fugiria ou desistiria, ou tentaria alcançá-la e arrebatá-la, já que, para onde quer que ele fosse, ela lá não estaria.

Fernando Munhoz
Enviado por Fernando Munhoz em 22/07/2018
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