O beijo

Todos os dias ao entrar na sala de aula, geralmente mais atrasado que o permitido, olhava para o canto e a via, sempre do mesmo lado, com as mesmas pessoas e com o mesmo olhar, um tanto impenetrável, pelo menos pra mim. Jogava minhas coisas sobre uma das mesinhas azuis que usávamos e tentava me enturmar, querendo saber sobre o assunto do qual falavam com veemência e entusiasmo, e cujo atraso não me permitia acompanhar o início.

Fazia, durante toda a conversa, trejeitos espalhafatosos como de um adolescente que queria ser notado, sobretudo, por ela. Sem saber exatamente o porquê, ela exalava um ar de autoridade, como se sua opinião fosse de fato a mais importante. Era como se aquela autoridade viesse não apenas de seu discurso, mas de seu olhar e personalidade ariscos, jeito esse que, de alguma forma, lhe concedia algum tipo de superioridade com relação ao resto do grupo, o que era chato, porque o palhaço é sempre o menor, a não ser quando realmente tem graça, o que não era bem o meu caso na maioria das vezes.

Nosso grupo era curiosamente diverso. Éramos em seis, pelo que me lembro, havia a garota que gostava de maquiagem, o calado, que depois já não era tão calado assim, o garoto que gostava de garotos, e que também era o palhaço oficial, que sempre tinha histórias incríveis para contar, se eram reais ou não pouco importa, nos fazia rir. Tinha também a puritana, que não gostava muito das brincadeiras, mas que ria junto, mesmo que as vezes nos repreendesse depois. E sobrou nós dois, o palhaço reserva, em caso da falta do primeiro, mesmo que não desse muito certo, e ela, que só abria espaço em momentos que qualquer tentativa parecia impossível.

Durante as aulas, mais divertidas do que se pode imaginar, contávamos histórias e estórias, tinha de tudo um pouco, falávamos do que havia acontecido no fim de semana, de programas de TV, de músicas, de amores, sempre cobrindo todos os acontecimentos da escola. Se comparássemos nossa escola com um jornal, nossa turma eram os repórteres, sempre em busca de um novo assunto. Aquele ambiente era uma verdadeira sociedade, que apesar de pequena, cerca de 650 alunos, era tão complexa quanto qualquer grande cidade, com seus encontros e desencontros, declarações, brigas, tapas e beijos com grande frequência. Professores que na verdade estavam mais para amigos que nos davam aulas do que para adultos chatos e enfadonhos, pessoas maravilhosas que aprendi a admirar de maneira ímpar, o que não significa que não houvessem os chatinhos, mas nada que uma boa brincadeira não resolvesse.

Nossa turma estava metida em tudo, cada evento, cada apresentação, por menor que fosse, estávamos lá, rindo muito, mas sempre contribuindo para que tudo acontecesse da melhor forma possível. Sentia como se aquilo nunca fosse acabar, era tudo tão mágico que doença nenhuma podia me fazer deixar de frequentá-la. Um ambiente que nos fazia sentir alegria e paixão pela vida a cada dia. Tudo se tornava mais leve e belo quando estávamos na escola, preocupações não havia sequer nenhuma a não ser em como iríamos nos ajudar durante as avaliações, criando maneiras das mais engenhosas que se possa imaginar, que iam de códigos gestuais até o bom e velho papelzinho, as vezes denunciados por nossas notas exatamente iguais.

Com alegria, risos e brigas cheguei ao último ano, sem nunca ter sido chamado a atenção uma vez sequer, resolvi sabotar minha própria imagem, fiquei correndo pelo pátio, fugindo da diretora, que quase não acreditava que logo eu, um aluno aparentemente exemplar, pudesse estar fazendo aquilo, enquanto eu esperava, propositalmente, que me chamasse à sua sala e assinasse o famoso ‘livro de ocorrências’ da escola. Levei para casa uma carta exigindo a presença de um responsável para resolver minha terrível indisciplina, o que não deu em muita coisa além do velho discurso de correção, onde todo e qualquer aluno era muito "bonito e inteligente".

A organização de nossa festa de formatura foi um sentimento confuso, uma alegria acompanhada de uma tristeza inquietante. Mesmo em meio aos inúmeros planos de ir para a universidade não esperava ter de deixar nosso cantinho no lado direito da sala, com nossas cadeiras do lado umas das outras e nossas risadas e desentendimentos que nada podia superar, e que dinheiro nenhum podia comprar. Éramos realmente felizes.

Na noite da festa todos os formandos estavam na missa, a maioria sem ouvir uma palavra sequer, ansiosos pelo momento da festa pós-formatura. E eu do lado de fora da igreja conversando com quem passasse na rua. Chegamos ao local da festa, todos muito arrumados, acompanhados de uma emoção sem precedentes, enquanto eu pensava apenas em três coisas: o quanto era triste deixar nossos momentos no cantinho de nossa velha sala, o que faria quando tudo aquilo acabasse e, o mais importante, o beijo que eu esperava conseguir naquela noite, prometido a todo o grupo e a ela mesma, ainda que contra a sua vontade e sem nenhuma confirmação de que aquilo seria possível, a garota que, dentre todas, me fazia sentir desafiado. Conseguir aquele beijo era caso de honra.

Durante a festa de formatura pensava em como iria conseguir o beijo da garota do desafio, com seu ar de autoridade, mas que naquela noite, em especial, exalava uma leveza que não se via sempre, um olhar sereno, diferente daquele de todos os anos que passamos juntos, adornada por um vestido vermelho, luvas delicadas e uma pequena coroa que fazia dela a gentil princesa que um dia sonhei em beijar.

Resolvi tentar, perguntei com um ar de gaiato: “e o meu beijo?” Fui imediatamente rejeitado. Tentei novamente, dessa vez com uma pergunta um pouco mais séria: “Não vai me dar um beijo?” Negado mais uma vez. Mas havia alguma coisa naqueles "nãos" que me deixava inquieto, pareciam exalar um pequeno sim. Talvez fosse só minha imaginação tentando reaver as esperanças. Naquela noite ela não era a autoritária que foi na maior parte do tempo, seu olhar já não era tão impenetrável assim. Tiramos algumas fotos. A festa chegou ao fim. Não porque houvesse acabado de fato, mas eu não mais à via, era madrugada.

Meu desejo de cumprir aquela promessa não me deixava ficar parado, minha honra pedia por aquele beijo. Fui até sua casa decidido a cumprir o que havia prometido. Cheguei em frente a casa, chamei, ela veio, nos encontramos sozinhos pela primeira vez na noite, agora sem ninguém que pudesse suprimir sua possível vontade de dizer um sim. Então perguntei mais uma vez: E o beijo?

Felipe Chaves
Enviado por Felipe Chaves em 23/09/2018
Reeditado em 08/10/2018
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