O Navegador e a Cigana

A Cigana matava o Navegador com sua sensualidade… E dava - lhe vida com sua pureza. Não era uma pureza de mente, porém uma pureza de mãos. Mãos que marcavam o Navegador até mesmo no mais curto e efêmero dos toques. Dedos cujos rastros eram impressos na retina dele, tais quais fantasmas despertados por azedas maldições. Discretos olhares que exalavam a fumaça de seus pensamentos cobertos por noturnas cortinas. Dizeres que serviam como lanternas para os olhos na escuridão.

Os olhos de ambos se encontravam e ligavam - se por laços de ferro. Nenhum dos dois podia escapar para suas realidades pessoais. Presos em cavernas das quais não queriam sair. Um queria se conectar à história do outro. Queria construir pontes. Pontes para se ligarem. Pontes para se encontrarem.

Tábua após tábua. Prego após prego. Eram quando os pensamentos surgiam rápidos como o cair de gotas azuis e intensos como o rugir enraivecido dos céus. Noites vívidas como os dias. Sonhos dele encantados pela voz dela. Sonhos dela imaginavam vultos dele que pudessem suprir a presença desejada. As veias dos dois se entrelaçavam e suas almas pulsavam em uníssono no momento no qual os quilômetros que separavam os dois eram desmembrados até restarem alguns poucos metros.

Ambos suplicavam por um sinal. Um sinal que confirmasse o encontro dos dois. Um selo para as correntes cultivadas. A concretização da intenção. E a Voz dos Céus lhes aconselhou. Quando o sentidos se tornarem tangíveis, disse. O parar do cair da areia da ampulheta, nada foi falado.

O bater de cada prego preenchia o navegador com tristeza e sono indesejado. O enxame de pessimismo em sua cabeça mergulhava sua visão em realidades de solidão. Proclamava seus sonhos como mentiras e a construção de sua ponte, uma desilusão. Um enxame que relaxou os seus músculos e queimou seus neurônios. O martelo deslizou de seus dedos. Olhou para o horizonte atrás de sua ilha. Seu próprio Reino Frio, com suas torres irregulares do mais azul dos cristais de gelo se formando, tais quais como cicatrizes cruéis… cuja ordem foi interrompida por um toque. Um toque em seu ombro. Um toque quente. Um toque delicado. Seus sentidos se voltaram para aquele toque.

O olhar do Navegador se perdeu nela. Olhar que queria continuar perdido. Ele se levantou, e o Reino da Solidão se desmoronou. Ele a abraçou enquanto as torres geladas do Reino se quebravam em gritos estridentes e caíam desesperados… destruídas pelo calor da Cigana.

Linhas brancas rasgavam pelo seu e violavam a sua quietude com gritos capazes de trespassar a mais negra das almas. Cada rugido de fúria era uma morte à cada gota de paz no Navegador, abrigado em seu canto. Seu próprio recanto. Um manto feito de madeira, cordas e a esperança de encontrar novamente a Cigana. Cada esbravejar branco era um grão a mais de ansiedade para reencontrá - la. O mais aguardado dos reencontros garantido pela ponte que conectava seus mundos e ligava suas mentes. O cessar dos rugidos, recomeçar dos olhares… abalado por um estrondo horripilante. Um som foi perverso o bastante a ponto de implodir seu doce coração e lhe deixar uma amarga dor. Sua felicidade escapava de suas vias aéreas tal qual como fumaça e dissipava - se no ar. Nada poderia ter segurado - a. Nada. Nem suas memórias. Seus momentos. Seus tesouros. Nem mesmo a Cigana.

O Navegador levantou - se com elevada dificuldade, usufruindo de todas as forças que a tristeza poderiam lhe conceder e andou de forma tortuosa até a ponte. Ao mesmo tempo que um aroma quente e fúnebre ocupava seus pulmões como vermes, os pensamentos da Cigana não despertavam nada mais que indiferença. Vazios. Como se todo o amor nutrido e cultivado tivesse sido materializado em pó sem vida.

O cheiro aumentava. O exalador se apresentava à sua visão. Quanto mais nítida era a sua forma, mais o sangue limpava os olhos com vermelho vivo. Limpava - os do que despertava a loucura em sua caixa craniana. A ponte havia sido quebrada. Um longo espaço descontínuo separava os dois caminhos: O caminho do Navegador, construído com madeira firme e cuidadosamente empilhado, e o caminho da Cigana, montado com os mais apodrecidos e pobres pedaços de madeira, amarrados e pregados de forma descuidada. Por mais verdadeiro que tivesse sido o seu amor, o Navegador não consegui crer na não reciprocidade da Cigana. Tentou fazer da forma da sua ponte compatível, todavia com materiais sujos e fracos. O Navegador sentia - se violado ao ver tudo aquilo.

Gritou lara espantar sua última reserva de razão. Amarrado pela rédeas da loucura, arrancou cada pedaço de sua própria ponte. Cada pedaço retirado era uma facada sobre sua fina pele. Uma dor que acorrentava a sua raiva e colocava a motivação em dúvida. Eventualmente, as correntes eram arrancadas e loucura via - se livre novamente. Continuou a despedaçar a ponte como se a dor não possuísse significado. Coração endurecido, olhos cegos, orelhas cortadas, voz inaudível, narinas queimadas. Um animal que sacia sua sede.

O Navegador arrancou os últimos vestígios de sua forte madeira. Deitou - se na areia de sua ilha particular. Seus olhos marejados de sal. Seus pulmões hiperventilados. Ossos esfarelados e músculos drenados. Agitação vermelha ainda em seu peito.

Por fim, a noite o cobriu com o seu denso cobertor. Banhou seus olhos com o piche de luz. Enegreceu seus pensamentos.

O bréu gelado.

Caio Lebal Peixoto (Poeta da Areia)
Enviado por Caio Lebal Peixoto (Poeta da Areia) em 13/01/2019
Código do texto: T6550009
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2019. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.