O TRIO

Cheguei do trabalho às 8 da noite naquela sexta-feira. Tirei os sapatos, soltei os cabelos e agradeci a Deus por estar na minha casa, onde poderia descansar, ouvir música, ler e escrever sem um chefe me olhando e me pedindo coisas a cada dez minutos. Fui à cozinha pegar um suco e, ao passar pelo telefone, apertei o botão da secretária eletrônica que estava piscando. A voz de Renata me dizia que estava me esperando naquela noite, para o seu vernissage. “Não admito que você, minha melhor amiga e incentivadora, falte, estamos entendidas? Um beijo.” Eu me havia esquecido completamente daquele compro-misso. Tomei uma chuveirada, sequei os cabelos, escovei-os para que ficassem volumosos, vesti um vestido cor de pêssego, que ficava muito bem em contraste com a minha pele queimada do sol, e fui dar uma olhada no espelho.

- Como é que uma mulher tão atraente como você está sozinha até hoje? – perguntei a mim mesma. O trânsito estava bom e cheguei em menos de vinte minutos. O salão, muito iluminado e espaçoso, comportava bem as obras de arte de Renata e de mais três artistas. O trabalho dela se destacava pela harmonia, pela cor e pela força dos traços. Havia gente de todo tipo. Muitos mostrando uma fisionomia cansada, outros muito alegres, depois de vários copos de vinho. Um homem, especialmente, me chamou atenção. Era alto, tinha os cabelos longos, presos num rabo de cavalo, pele morena e um olhar penetrante. Tentei ignorá-lo, a princípio, mas meus olhos queriam saber mais a respeito daquela figura. Cada vez que eu o olhava encontrava os olhos dele fixos em mim. Por fim vi Renata, rodeada de amigos, me chamando para me apresentar algumas pessoas que eu ainda não conhecia. Logo que tive oportunidade perguntei-lhe quem era aquele homem. Ela não o conhecia, mas me disse que já o havia visto em outros vernissages. Talvez seja do tipo que lê nos jornais sobre os acontecimentos da cidade e aparece, mesmo sem ser convidado - pensei. A minha curiosidade aumentava à medida que nossos olhares se cruzavam. Continuei passeando pelo salão, cumprimentando alguns amigos que não via desde a última festa na casa de Renata. O calor estava forte e resolvi ir para o jardim, respirar um pouco. Sentei-me sob um alpendre e peguei um cigarro. Estava procurando o isqueiro quando aquela chama apareceu diante de mim.

- Me permite acendê-lo? Aqueles olhos, iluminados pela chama do isqueiro, brilhavam para mim me desconcertando. Senti-me como uma menininha de escola, sem saber o que dizer. Ele pediu licença e sentou-se ao meu lado. Conversamos sobre vários assuntos. Senti que ele tinha cultura, sensibilidade e uma esmerada educação. Contou-me que havia estudado em Cambridge e que depois havia se mudado para a França. Perguntei-lhe se entendia de pintura ou se era apenas um apreciador, como eu. Ele me respondeu que gostava muito e entendia um pouco. Já havia pintado alguma coisa num passado muito remoto e havia parado por um problema neurológico. Não quis entrar em maiores detalhes. Senti que lhe era penoso falar sobre o assunto. Procurei falar de minha amiga que estava muito feliz com a sua exposição.

- Eu não a conheço - me disse - mas gostaria de conhecê-la. Você me apresenta a artista de tão bonitos trabalhos?

- Claro! Com muito prazer.

Voltamos ao salão e procuramos Renata, que se abriu num sorriso.

- Renata, quero te apresentar um admirador de sua arte. Seu nome é... - Bartelli, Alessandro Bartelli, se apressou em dizer. Eu nunca pensei que estivesse sendo a introdutora de um problema tão grande em nossas vidas. Renata ficou trêmula quando ele lhe apertou a mão. Ele a olhou diretamente nos olhos. Naquele momento pensei que um grande romance poderia acontecer entre eles dois e, mais uma vez, senti ciúmes de Renata. Ela sempre me roubava os namorados, por ser mais bonita. No entanto eles não duravam muito. Muitas vezes ela me chamava para sair com ela e algum de seus pretendentes e eles acabavam conversando comigo, de mãos dadas com ela. Era uma situação embaraçosa que eu já não estava mais suportando. Eu gostava dela, mas ela me fazia mal, não posso negar. Se ainda continuávamos a nossa amizade era por não haver nenhum motivo claro para um rompimento. Ela era gentil, me convidava para todas as festas, sua família me tratava muito bem e ela dizia para todos que eu era sua maior amiga. Bartelli passou a fazer parte do grupo e estava em todas as reuniões ou nos almoços na casa de praia. Nossa amizade foi se tornando cada vez mais forte. Eu sentia uma atração enorme por ele e sabia que não lhe era indiferente. Renata estava apaixonada por ele e ele gostava de luzir, por toda parte, aquela mulher bonita e rica. Os pais de Renata estavam na Suiça. Fomos passar o fim de semana na casa de veraneio. Lamento que aquele cenário maravilhoso tenha sido o palco de uma tragédia de proporções gigantescas. Comemos e bebamos bastante e, depois do almoço, fomos para nossos respectivos quartos repousar um pouco. Renata dormiu em poucos minutos. Bartelli levantou-se e veio para o meu quarto. Eu estava deitada, tentando ler uma revista e só o percebi quando escutei o barulho do trinco. Ele colocou o dedo sobre os lábios me pedindo silêncio. Foi se aproximando e me beijando. Em gestos rápidos e delicados foi me despindo. Eu deixe-me desnudar sem remorsos. Afinal eu também tinha direito de ser desejada por alguém. Talvez o meu jeito tímido me tenha feito passar despercebida. Eu não valorizava os meus cabelos longos e a minha pele macia. Sempre me comparava com outras mulheres que eram o meu oposto e, claro, sempre as achava mais interessantes do que eu.

- Você é sedosa, Leila, tem um cheiro de mel, um hálito gostoso, um cabelo perfumado. Por que você se esconde de você mesma? Por que não se deixa amar? Eu estou, há muito tempo, tentando te conquistar. Me aproximei de Renata com esse objetivo. Sei que você se interessaria por mim se soubesse que eu estava com ela.

- Como você pode saber o que se passa na minha cabeça?

- Eu sei mais sobre você do que você pensa. Eu conheci seu pai e ele me falava muito de você. Infelizmente ele morreu antes que eu tivesse a oportunidade de conhecê-la. Comecei a gostar de você mesmo antes de vê-la. Ele sempre me falava de você com adoração e dizia se preocupar com a sua felicidade. Uma vez ele me disse que você não estava satisfeita com as coisas que tinha, que estava sempre querendo conquistar as coisas que lhe pareciam impossíveis. Talvez, dizia ele, porque não as conseguindo se punia pelo fato de não ter conseguido mantê-lo junto de sua mãe. Ele sempre dizia que isso devia ser uma coisa inconsciente, mas era real na sua vida. Acho que essa conclusão ele tirou de uma conversa que teve com o psicólogo dele. Ele me contou, também, que você sempre queria as coisas da sua amiga Renata. Contou-me da boneca de porcelana que você ganhou no Natal e que você desprezou porque não era de pano como a de Renata, naquela época muito pobre. Contou-me ainda que você passou para a universidade Federal com a nota máxima e ficou chateada porque queria estudar na faculdade particular do subúrbio, onde Renata, a duras penas conseguira uma vaga. Por essas histórias eu imaginei que você gostaria de mim se pensasse que eu estava apaixonado por Renata.

- Mas esse é um jogo muito perigoso, Bartelli. - Eu sei, mas só por esse momento já teria valido a pena.

- Como você conheceu meu pai? Trabalhamos juntos na mesma faculdade. Ele era meu mestre predileto e, quando pode, me levou para ser seu assistente. Costumávamos almoçar juntos e foi numa dessas ocasiões que ele me contou que tinha ficado afastado de você por muito tempo quando ele e sua mãe se separaram. Você era muito pequena, precisava mais da mãe do que dele, mas isso o fez sofrer muito. Parece que sua mãe dificultava as visitas dele e eles sempre brigavam. Não querendo criar um conflito e ver os seus olhos assustados com as discussões, ele foi se afastando. Só depois que sua mãe morreu é que ele começou a pesquisar a sua vida com a intenção de se aproximar. Sabia tudo sobre você através de amigos. Infelizmente ele demorou muito para se aproximar e agora que vocês estavam começando a se entender, ele partiu, não é verdade? - Sim, é verdade. Fomos grandes amigos. Eu lhe confesso que gostaria de ter podido ficar com ele mais tempo do que me foi permitido. Até hoje me pergunto por que ele tinha que ir a São Paulo, quando sofreu aquele acidente fatídico. De todo modo, o tempo em que convivemos foi o melhor da minha vida. Mas não quero mais falar sobre isso. É passado, tenho que esquecer.

Fomos nos abraçando, nos beijando e ele me penetrou suavemente, ocupando todo o meu espaço sedento de amor. Não saberia descrever o que senti, estive no ceu. O que eu não sabia era o inferno que o destino me estava reservando. Renata acordou e, não encontrando seu amante, levantou-se e veio bater à minha porta. Não respondi, fazendo-a crer que eu estava dormindo. Ela desceu as escadas e foi para a piscina. Uma das crianças, filha da empregada, começou a conversar com ela e lhe perguntou por que o tio Bartelli tinha ido dormir no outro quarto.

- Ele foi dormir no outro quarto? Qual quarto? - O da moça de cabelo comprido, respondeu a menina.

Renata subiu as escadas. Não havia como esconder a verdade. Ela nos encontrou abraçados. Nos olhou com olhos fuzilantes e desceu numa carreira desabalada, sem dizer uma palavra. Vesti-me e desci tentando arranjar uma maneira de dizer-lhe que aquilo que ela vira fora fruto de uma bebedeira, mas ela me recebeu com um revólver e, com as mãos trêmulas, disparou dois tiros que mudaram o rumo da minha vida. Com o barulho dos disparos todos desceram dos quartos e estava formada uma tremenda confusão. Só me lembro de ter ouvido alguém pedir para chamarem uma ambulância e a voz de Renata que afirmava que a arma tinha disparado. Passei muitos dias entre a vida e a morte. Agora, graças a Deus, estou bem, embora numa cadeira de rodas, talvez para toda a vida. O caso foi abafado. Mais uma vez a velha história de uma pessoa que estava limpando a arma e esta disparou, foi apresentada como a verdade. Muito dinheiro deve ter rolado para que essa versão não tenha sido investigada. Eu não tenho mais ninguém no mundo. Quem iria me acreditar? Hoje Renata veio me ver. Pediu para ficar sozinha comigo. A enfermeira saiu. Senti-me desamparada sem essa mulher que vem me cuidando com abnegação e que é a única pessoa em quem confio, atualmente. Meus olhos deviam mostrar medo, pavor, arrependimento e outros sentimentos confusos. Renata se debruçou sobre mim e chorou muito. Ela quer ser a minha guia, não deixando que nada me falte. Está arrependida por toda a bobagem que fez e não sabe como poderá se redimir de seu pecado. Mas eu sei. Vou escraviza-la. Ela fará todas as minhas vontades. A vida dela vai ser mais infernal do que a minha. Ela vai desejar estar no meu lugar, com as pernas paralisadas, dependendo dos outros para tudo. Não será somente Renata o meu alvo. Bartelli vai ser o coadjuvante desse minha história. Renata me levou para sua casa. Eu não tinha condições de ficar sozinha. Seus pais me adoram e eu vou aproveitar esse sentimento. Somente atormentarei a esses dois bandidos que destruíram a minha vida e os meus sonhos.

- Renata, eu quero falar com o Bartelli.

- Mas Leila, depois de tudo que aconteceu você ainda quer falar com ele?

- Ele me ama, Renata. Você foi apenas um pretexto para ele se aproximar de mim. Uma vez, pelo menos, eu tenho que ganhar de você. Em toda a nossa vida você esteve sempre no primeiro plano. Agora é a minha vez. Além do mais você disse que faria tudo para se redimir, não disse? Você pensa que é fácil eu saber que você vai continuar a sua vida normal, com praia, cinema, festas, enquanto eu fico aqui vegetando? - Está bem, Leila. Vou discar e você mesma falará com ele. Bartelli veio ao meu encontro. Seus olhos se umedeceram quando ele me viu na cadeira de rodas. Ele já sabia do meu estado, embora Renata o tivesse enxotado de sua casa, logo após o acidente. Ele acompanhou a minha cirurgia e a minha saída do hospital, através de uma amiga. - Bartelli, você sabe que eu estou inutilizada e eu não quero a sua piedade – lhe disse. Eu quero que você se case com Renata.

- Mas Leila, é a você que eu amo.

- Amava, Bartelli. Você amava uma mulher que podia corresponder ao seu amor. Agora eu não sou mais a mesma e, se você quiser me fazer um pouco menos infeliz, case-se com ela. Assim ficará perto de mim também. Você vai ter uma boa esposa. Ela é bonita, rica, e te ama. Tenho certeza de que vai fazer você feliz. No meu subconsciente eu pensava: ela é egoísta, mimada e fria e você estará arrependido em três meses, se tanto. Você tem que pagar pelo que me aconteceu. Todos os dias eu trabalhava a cabeça dos dois. Depois de seis meses consegui o meu objetivo. Ajudei na realização daquele sonho que era o meu. Acabada a festa eles vieram se despedir de mim, antes de partirem em lua de mel. Eu queria que eles fizessem amor na minha frente. Eu queria ver como seria. Tenho certeza de que eu seria muito mais ardente do que ela e o faria vibrar muito mais do que aquela egoísta, que amava a si mesma mais do que a qualquer pessoa. Ela amava muito os seus quadros, as sua joias e seus belos vestidos, tudo conseguido com as falcatruas de seu pai, mas não saberia amar um homem como eu. Eu era a mulher que ele desejava e agora ele iria dormir com ela. Por que ele tinha concordado com o casamento. Gostaria que ele relutasse a aceitar essa minha imposição. Os pensamentos cruzavam a minha cabeça como flechas envenenadas, mas eu consegui sorrir e desejar felicidade. A minha vida agora só tinha um objetivo: fazer aquela mulher sofrer pelo que havia feito comigo. Renata voltou da lua de mel e veio morar na casa dos pais, como eu havia exigido. Eu não queria ficar na mão dos empregados. Exigia que ela mesma viesse me ajudar a me banhar, a ir para a cama ou a pegar livros que estavam no alto da estante. Uma noite entrei no quarto deles. Eles estavam fazendo amor.

- Não parem – lhes disse – Eu quero ver, já que não posso fazer. Continuem se amando. Vou sentir prazer só em vê-los.

- Não Leila, não me obrigue a isso – gritou Renata.

- Você quer que eu conte a história do tiro para a sua mãe? Ela morreria do coração no mesmo instante. Será que você aguentaria mais esse crime nas suas costas?  Nós podemos dividir esse momento. Peça ao seu marido para me colocar na cama com vocês. Bartelli me carregou para a cama. Ficamos os três deitados. Ela pegou a mão dele e colocou entre as minhas pernas. Ele começou a me acariciar. Puxei-o para mais perto de mim e nos beijamos violentamente. Renata assistia sem uma única palavra. A partir dessa noite passei a frequentar o quarto do casal e fazíamos amor os três. O primeiro ano se passou sem que eu obtivesse nenhuma melhora. A fisioterapia não me levava a andar, embora ajudasse minhas pernas a não se atrofiarem. Um congresso de medicina trouxe ao Brasil um dos maiores cirurgiões da Europa e eu exigi uma consulta com ele. Renata já havia pedido aos pais uma parte de sua herança para poder custear o meu tratamento. Eles lhe deram sem argumentar. A filha, para eles, fazia tudo por mim porque era generosa e amiga. Fomos ver o tal médico. Ele me examinou, tirou várias radiografias e nos disse que voltássemos dentro de dois dias, quando ele nos diria se seria aconselhável ou não fazer a cirurgia que poderia me devolver os movimentos. Nunca dois dias demoraram tanto a passar. Naquela noite, como de costume, fizemos amor os três. Renata parecia não sentir mais nenhum prazer naquela relação. Nós dois, no entanto, mesmo com todas as limitações, fazíamos as nossas noites deliciosas. Era um amor a meio, é verdade, mas isso já me satisfazia. Logo seria diferente Todo o ódio que eu sentia por Bartelli foi se transformando em ternura. Eu sentia que ele era meu, só meu. O dia tão esperado chegou. Fomos à consulta e o médico nos recebeu com um sorriso animador. Tinha chegado à conclusão que eu tinha grandes chances e resolveu me operar. Marcamos a cirurgia para a semana seguinte. Após a cirurgia o médico saiu da sala e se dirigiu à Renata, que esperava ansiosa o resultado: Foi um sucesso! – lhe disse.

Renata deu um sorriso de alívio e de angústia. Se, por um lado ela estava livre da escravidão à qual a submeti durante todo aquele tempo, por outro ela sabia que agora perderia, definitivamente, aquele homem que estava destinado a mim.

edina bravo
Enviado por edina bravo em 05/02/2019
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