Aconteceu em Veneza

Veneza, 1610. Era carnaval, grande parte das pessoas estavam nas ruas à noite, todas fantasiadas, a maioria com máscaras baseadas na commedia dell'arte. A festa se realizava mesmo a contragosto da Inquisição; esta estava mais branda, mas ainda se sentia no ar o mau cheiro de carne humana queimada, rivalizando com o cheiro do mar. A fogueira continuava punindo principalmente os judeus. A festa estava, portanto, se realizando e dela não participavam os judeus, eles ficavam isolados no gueto porque à noitefechavam os portões que davam acesso às ruas centrais.

Em meio à multidão, um sujeito fantasiado com uma máscara de "dottore della peste" (com um narigão que metia medo), procurava por uma bruxa especial. Depois do reconhecimento mútuo, começaram a se divertir, mas não quiseram demorar nas ruas. Foram direto para um apartamento que ficava num prédio em uma rua escura e distante. Sabiam que estavam se arriscando, mas o amor e paixão, juntos, desafiavam qualquer perigo.

Ele era um professor judeu que ensinava, a domicílio, línguas estrangeiras a mocinhas filhas de ricos comerciantes venezianos. E ela ra mãe de uma das alunas desse professor; era uma baronesa italiana esposa de um médico famoso e riquíssimo que tinha muita influência junto o Doge que governava Veneza. Havia mais um detalahe ainda mais perigoso ao amor dos dois: a baronesa era sobrinha do Inquisidor, o responsável por mandar judeus para a fogueira. O Inquisidor ainda quis vetar a contratação do professor judeu para dar aulas à sua sobrinha, ficou uma fera, mas o médico bateu o pé. O professor foi obrigado a se submeter a uma entrevista com o Inquisidor; este foi muito claro, qualquer referência ou menção às idéias malsãs dos judeus nas aulas, e ele iria para a fogueira. O professor ainda quis rejeitar o convite do médico, mas ficou com medoque isso fosse encarado como uma desfeita e acarretasse uma retaliação contra a sua pessoa.

Na primeira aula, além de ficar impressionado co a beleza do palacete do médico, outra impressão foi ainda maior, e ela impediria que ele jamais pensasse em declinar do convite para dar aulas à filha do médico. Não or causa da mocinha, uma adolescente sem nenhum encanto, mas sim devido à beleza da mãe dela, uma mulher belíssima, cm seus 30 anos, um corpo espetacular, sensual, cabelos louros encaracolados, risonha, com uma voz aveludada, olhos verdes perscrutadores e sem nenhuma vaidade ou autoritarismo. Quando foi apresentado a ela, o professor vislumbrou o começo dos seus seios empinados. Era uma mulher em pleno viço,a mulher mais bonita que já tinha visto. Nem nos seus sonhos mais lúbricos imaginara uma mulher como aquela. Começou a gaguejar e a mulher a rir gostoso, afirmando-lhe que, por decisão de seu tio, seria a vigia das aulas. Realmente essa exigência fora estabelecida elo Inquisidor.

Com o passar dos dias, o que ele mais gostava era do intervalo das aulas, quando conversavam sobre a cidade, a história de Veneza, o fato de ser uma cidade dentro do mar, as festas e, claro, as artes, mas sem nunca tocarem em política ou ideias proibidas. Ela era exímia pianista, de vez em quando tocava para ele trechos do "L'Orfeu", de Monteverdi. O professor, da admiração começou a se apaixonar pela baronesa. E ela por ele. Das cadeiras de espaldar alto passaram para um divã macio. Ela, quando ria, dava-lhe tapinhas de leve nas pernas; ele reagia simulando empurrá-la, até o dia que mocinha teve uma indisposição e saiu mais cedo para o seu quarto. Então eles, a sós, sem necessidade de trocar nenhuma palavra, apenas falando com os olhos a linguagem d desejo. se agarraram, se beijaram ardorosamente e rolaram no tpete da sala, mas não concluíram o que tanto ansiavam, embora soubessem que a conclusão seria irreversível. Talvez não quisessem consumar a paixão que os devorava dentre as quatro paredes de uma casa que ambos respeitavam. Ficaram limitados apenas a esses agarramentos e beijos quando pintava uma oportunidade. mas se amando demais. Ela contou a ele que sentia necessidade de amar de verdade, mas o marido era um homem de idade avançada e já não podia satisfazê-la. Qe vivia nas janelas invejando os namorados que passavam na Piazza, nas gôndolas... todos flertando alegremente e ela so desejando...

Foi então que apareceu a oportunidade do carnaval, o médico fora chamado à Florença onde um ricaço estava muito doente e precisava dos seus cuidados. Ele foi. Então a baronesa e o professor bolaram o plano de se encontrarem à noite em plena festa, e depois irem se amar de verdade no apartamento da camareira dela, alguém da sua estrita confiança. Escolheram até as fantasias, ela providenciou a de "dottore della peste" para ele e a de bruxa para si própria. "Ficaremos aterradores", brincou, dizendo que ele seria o terrível narigudo, e elaa bruxa ma. O encontro seria na Piazza San Marco. Para que o plano desse certo, o professor não poderia voltar para casa nesse dia porque à noite os portões que davam acesso ao centro da cidade eram fechados, o gueto dos judeus ficava após as pontes. Assim ele ficaria "matando o tempo" nas ruas, ´à noitinha colocaria a fantasia e iria ao encontro dela. Ela sairia de casa alegando à fiha que iria a um compromisso social. Nem por um momento os dois pensaram no perigo a que estavam se expondo.

Quando chegaram ao apartamento foram logo se livrando das fantasias e das roupas, e se entregando àquilo por tanto tempo desejado. Fizeram todas as estrepolias possíveis, até se cansarem. Depois foram comer a ceia preparada pela fiel camareira e, inclusive, tomar uma garrafa de vinho da adega do médico. Depois repetiram a dose e... resolveram voltar para as ruas, brincaram no meio do povo naquela folia debochada e sem freios. De madurada ela voltou para casa, e ele se estirou num banco da praça. Pela manhã lavou o rosto numa fonte, ja jogara a fantasia no lixo, tomou café no mercado e... foi dar aula à filha do médico. Mesmo cansado cumpriu a sua missão. Quando ia saindo foi no exato momento que ela se levantara e vinha tomar o seu café, falou normalmente com ele como se nada tivesse acontecido, mas na porta sussurrou no ouvido dele: "Não precisa colocar a máscara de narigudo, meu marido só volta amanhã, vá novamente ao mesmo local, mas à atarde. Tornaram-se amantes. Arriscavam-se demais numa cidade onde pululavam informantes do Inquisidor. Ficaram cada vez mais ousados. E o pior da paixão é a ousadia, ela termina pondo tudo a perder. Foi o que aconteceu. Certa tarde ela resolveu fazer u passeio de gôndola com ele, com se fossem simples namorados, não usaram nem uma gôndola com cobertura, ela queria dar vazão a um desejo antigo, sem nenhuma precaução. Resultado: um informante vu e denunciou o fato ao Inquisidor.

O professor foi preso quando chegou no outro dia à port do médico para dar a costumeira aula. Foi preso e agredido, colocaram-lhe até ma espécie de máscara de metal e na hora que aparafusaram a máscara no seu rosto, ele perdeu três dentes. Foi levado para a famosa prisão que ficava anexa à Fonte dos Suspiros. Nunca mais ele veria a cidade que anto amava. Foi interrogado brutalmente, queriam que ele revelasse que meios usara para seduzir uma cristã, qal tinha sido a "feitiçaria judia" para levar ao pecado uma mulher honesta e puritana. Ele não sabia. Foi então levado para ma sessão de "relaxamento", era o afogamento numas tinas de água e ainda colocaram m pano na sua garganta. Um suplício terrível. Ele desmoronou, virou um trapo, terminou assinando uma confissão redigida elo Inquisidor. Foi condenado à fogueira. A mesma sentença foi dada à camareira da baronesa, embora ela não tenha sofrido tantas torturas. A baronesa foi dada como louca e ficou isolada num quarto que havia no alto do palacete.

Nunca mas se sube nada do professor, acredita-se que a sua execução na fogueira tenha sido realizada na própria prisão, a dele e ada camareira. O caso foi muito explorado e virou até livro no exterior. E houve uma medida, sugerida elo Inquisidor o Doge: proibir n carnaval máscaras de dottore della peste de de bruxa.

A baronesa enlouqueceu de verdade, sempre recordando o professor. Perdeu a beleza, definhou, virou uma demente. Seu último ato foi se atirar do alto do palacete. Pouca gente fi ao seu enterro, mas todo o povo sempre recorda essa historia triste de amor. Inté.

Dartagnan Ferraz
Enviado por Dartagnan Ferraz em 15/04/2019
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