E AGORA, MEU AMOR? (CONTOS MUSICAIS)

Não estava dormindo. Não estava acordada. Encontrava-se naquele estado entre o sono e o despertar onde os sonhos se multiplicam. Em que se anda, se tropeça e se levanta em outro sonho. A realidade e a fantasia se misturavam, as vezes sabendo-se estar sonhando, as vezes apenas pressentindo. Mas para cada cenário em que se via, o enredo e o figurino se repetiam: sempre bons, ela de branco, empregada, acompanhada, amada...

Não sendo convidada a consciência chegou. O cobertor, a cama, o cheiro de mofo misturado com suor, a mão que com delicadeza acariciava seu cabelo. Tudo lhe dava a certeza de que estava acordada. Já lhe era impossível voltar a montanha-russa de alguns segundos antes. Finitum est!

Há dias que deixara de se enojar com o que via ao acordar. Se tornara, de uma forma estranha e inédita para ela, agradável. Até o odor do quarto que tanto a desgostara há uma semana atrás lhe trazia paz. Deixou-se permanecer com os olhos fechados, tentando esticar o momento até o seu máximo. Em uma decisão penosa, abriu os olhos e voltou-se para o seu companheiro de leito. Era a perfeita representação de uma brochada! Coitado... Que me desculpem os feios, mas a beleza é fundamental! Aquele rosto de bolacha marcado pelos óculos fundo de garrafa, cabelo lambido, aqueles olhos pequenos, fora de esquadro, o corpo gordo e mole. Arghhh! Formava um conjunto triste. Mas não mais asqueroso, e, naquele momento, a faziam se sentir feliz.

-Bom dia, princesa! Uma pena você ter acordado, queria ficar te vendo dormir mais um pouco.

Estranho como ele misturava intimidade e tristeza no tom de voz.

-Assim não, você podia abusar de mim.

-Aahh, acho que eu não saberia nem por onde começar. . -Nosso tempo juntos me dizem que você sabe muito bem por onde começar uma sacanagem.

Se descobriu, levantou-se e foi até o banheiro. Com o canto dos olhos se deliciou com a reação dele. No começo cada olhar de admiração ou desejo dele lhe provocava asco. Agora o pau dele levantar só por vê-la nua era uma delícia, uma estranha forma de galanteio. E ele ainda ficou todo sem graça. Que bonitinho! Fechou a porta bem devagar, olhando de soslaio.

O banheiro continuava a porcaria que vira antes, só que agora sujo. Mas diferente da primeira vez que o vira, não lhe nauseava. Olhou com curiosidade os ladrilhos verde-água, que a meia altura se encontravam com uma parede de pintura bege, tudo com uma impressão de ultrapassado, como um boteco velho. A privada antiga, o box ainda de cortina, igual ao de Psicose. Achou um certo estilo na coisa toda. Para o bem ou para o mal combinavam com o resto do apartamento, que era a parte de cima de um sobrado centenário mal reformado.

Se olhou no espelho. Toda desarrumada, sem maquiagem, cansada. Mas, de uma forma inexplicável, quem ela via ali era linda! Sem que fossem chamadas lágrimas brotaram nos seus olhos. Tão diferente daquela mulher sem graça e melancólica que enxergara há uma semana atrás. A admiração com que ele a via de alguma forma se incorporaram na visão que naquele momento tinha de si mesma. Sentiu uma vontade enorme de pedi-lo em namoro, em continuar com aquilo tudo. Chacoalhou a cabeça. Como iria apresentá-lo as suas amigas? Como conseguiria andar ao lado dele sem se constranger? Havia sido tão difícil nos três primeiros dias. Isso por que não conhecia ninguém! O sexo poderia estar sendo bom agora, mas a ilusão que o carinho a fazia sentir um dia ruiria. Se veria de novo nesse espelho só que então ele estaria quebrado. Esses pensamentos desvaneceram suas ilusões. Fazer o que, sonhos sonhos são. Pelo menos ter estado com ele estes dias deixou a sua cabeça como um livro de citações literárias. Ligou o chuveiro, dos antigos, bom. Ele gritou do lado de fora:

-Eu vou sair para comprar pão e leite, você quer alguma coisa?.

-Entra aqui!

Abriu a porta e seu cavalheirismo ridículo em se esforçar para não olha-la era um encanto:

-Eu quero você!

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Sentada na cama, escovando os cabelos molhados, se esforçava para ficar no estado de ânimo apropriado ao que viria daqui alguns instantes: "Mas na manhã seguinte não conta até vinte, se afasta de mim. Pois já não vales nada, és pagina virada, descartada do meu folhetim...". Era a terceira vez que cantava esta música e era a primeira em que não chorava. Havia sido tão útil nas outras vezes, mas agora, agora parecia como tomar remédio de dor de cabeça para cólica. No entanto continuava tentando, mesmo percebendo que se sentia mais triste a cada vez. Tentava desesperadamente encaixar sua alma a letra, e esta resistia.

Desistiu e passou a tentar povoar sua mente de pensamentos práticos. O dinheiro vai dar para pagar o aluguel e passar quase metade do mês. Até lá, com sorte, vou ter conseguido um emprego e vou poder parar com isso. Ou então, quem sabe, só fazer ocasionalmente. De dentro de si ouvia uma voz zombeteira:"Ôh amiga, quem dá por dinheiro, seja uma , seja cem vezes, só tem um nome:PUTA!". É..."E eu preciso aprender a ser só...E ver que foi só um sonho e passou." E por aí passeavam seus devaneios.

Nunca tinha sido um exemplo de moralidade. Já havia se dado por muito menos que dinheiro. Dar-se por mais costumava ser tão doloroso... O que era bom, mas que a incomodava, era que este era o primeiro cliente em que a lembrança dos seus pais e de suas amigas afirmando sua incompetência não a assombrava. Na verdade se deu por isso naquele momento. Nas vezes anteriores era nítida na memória, em cada passo do caminho, a forma jocosa como a Luciana havia lhe contado da agência. De como seus pruridos foram se quebrando e se esvaindo um a um, como bolhas de sabão. A sequencia de eventos que lhe trouxera até a vida fácil vinha como um filme em cada michê. Das suas amigas... Amigas?! Chamá-las de colegas já era demais! Bem, o quê fossem, três semanas depois da formatura já estavam empregadas, muitas em jornada dupla com o bico da agência. Quase todas tinham sido uma variação um pouco pior das meninas que haviam lhe maltratado tanto durante a adolescência. Mas estavam trabalhando no campo onde se graduaram. E ela não... Cogitou em voltar para Santa Barbara do Oeste, emprego poderia ser mais fácil. Mas fora tão vilipendiada, tão maltratada. Errara tanto. Aqui em São Paulo ela era apenas mais uma. Morar de novo com sua família era o que simplesmente não conseguiria suportar. Na verdade tudo aconteceu quando se viu obrigada a isso. Quando seu pai lhe deu o aviso que não iria mais pagar seu aluguel, foi que ela fez o que fez. A simples lembrança da lembrança lhe arrepiava! Não era o seu quase falecimento que a assustava, era o ridículo. Assim que desligou o telefone, mandou um SMS para toda a sua agenda (desculpe...), e tomou todos os comprimidos que tinha no armário. Em seu desespero não percebeu que a colega de apartamento estava em casa com o amante. Ele percebeu que estava acontecendo e arrombou a porta do quarto. Levou-a até o banheiro no ombro e a fez vomitar. Não satisfeito puncionou-lhe uma veia e fez correr dois litros de soro glicosado que guardavam para as emergências pós baladas. E foi extremamente discreto sobre a coisa toda. O que, no final das contas, foi e continuava sendo mais importante do que ter lhe salvado a vida. Suspirou fundo e começou a se arrumar mais depressa.

Escutou a porta se abrindo no corredor abaixo. Preparou-se para assumir uma atitude profissional enquanto escutava seus passos nos degraus.

-Desculpa a demora, o banco estava cheio. Neste envelope que estou deixando aqui na cômoda há uma pequena gratificação. Por favor só abra depois de ter saído. Adeus.

Entrou no escritório e sentou-se em frente do computador sem olhar para ela. De relance ela percebeu que seus olhos estavam mareados. A surpresa só não foi maior do que a raiva e a indignação que sentiu. Ficou durante um tempo interminável parada entre o escritório aberto onde ela o via mexer no teclado e a escada. Não conseguia acreditar na frieza com que ele estava a tratando. Queria xingá-lo, lhe bater, humilha-lo exatamente como ele estava fazendo! Mas não conseguia! Ficou ali parada, esperando que ele se virasse e dissesse alguma coisa. Finalmente, no que foi uma eternidade de alguns segundos, vencida pelo seu desprezo, foi até a cômoda, pegou o envelope e começou a descer os degraus.

Na porta, antes de abri-la, desatou a chorar. Parecia a piada final. Durante a vida inteira se sentir um lixo. Um nada tão grande ao ponto de virar prostituta. Se sentir respeitada e amada por um cliente, pelo mais abjeto deles, e então sofrer tamanha humilhação! Decidiu jogar a merda da "gratificação" na cara dele. Por mais idiota que isso fosse. Mas de quanto será que era? Abriu-o e contou. Era o triplo que a agência tinha cobrado! E o valor da coisa toda já havia sido uma fortuna! Muito além das condições dele. Ou ele havia ganho uma bolada ou economizara anos para fazer este programa com ela. Continuou ali parada, mas agora totalmente confusa. Para quê tratá-la tão mal e paga-la tão bem, sem necessidade? De repente ouviu, vindo lá de cima, uma espécie de marcha militar. Sentou-se no primeiro degrau da escada e ficou escutando. Espantou-se quando ouviu a voz do Elvis Presley, incrivelmente dramática:

"What now my love, now that you left me

How can I live throught another day.

Whatching my dreams turning into ashes

And all my hopes into bits of clay.

Once I could see, once I could feel,

Now I'm a numb, I became unreal"

E agora, meu amor? Como eu vou viver por mais um dia? A sensação desconcertante de familiaridade só aumentou. Estes versos: "Vendo meus sonhos tornarem-se cinzas e todas as minhas esperanças pedaços de argila... eu me tornei irreal" Tão exatos! Essa sensação de irrealidade, de não ser capaz de sentir mais nada. Como essa musica podia mexer tanto com ela. Continuou sentada, se esforçando para traduzi-la, mas muito se perdia. Coisas como andar a noite sem rumo, sentir seu coração ser extirpado do peito, que o mundo estava se fechando sobre ele... A situação era absolutamente surreal. Há apenas alguns instantes estava furiosa, e agora se sentia compreendida, como nunca havia sido antes.

"No one would care, no one would cry,

If I should live or die."

Novamente aquela noite. O pensamento reconfortador de ir embora, sem deixar marcas, sem deixar lembranças. Como lagrimas na chuva... E de repente tudo fez sentido! Ela percebeu a razão de tudo o que tinha acontecido. O extravagante e caro contrato de se passar por namorada por dez dias. O fato evidente dele estar gastando muito além das suas condições. Visitar os pais no interior e a exibi-la como um troféu, ir visitar o túmulo do avô. Apresenta-la aos amigos da faculdade e do trabalho, onde era óbvio que era ridicularizado. Os momentos que seu olhar se perdia no horizonte sem razão, as frases estranhas. Ir até o Rio de Janeiro para ficar um dia, fumar um cigarro vendo o pôr do Sol no Arpoador. Saiu em disparada pelos degraus acima e a cena que viu no escritório não a surpreendeu. Ele estava com uma arma apontada para a têmpora enquanto olhava para o monitor do computador.

-Espera! Vamos conversar!

Ele não se virou e não baixou a arma:

-Não esperava mais te ver. Faltou alguma coisa, eu não tenho mais dinheiro.

O tom era de um cinismo forçado que só deixava sua figura mais triste:

-Eu não quero dinheiro, por favor, olha para mim!

Ele virou-se na cadeira giratória e sua face estava molhada pelas lágrimas:

-Larga a arma, vamos conversar, eu também gosto do Elvis...

Ele deu uma risada triste e abaixou a arma por entre as coxas.

-Essa foi horrível, hein querida? Desculpe assustá-la, minha flor, mas não tente me fazer desistir. A minha decisão é final e eu te agradeço do fundo do coração por fazer com que fosse melhor do que eu planejei.

-Mas porquê?

Ele a contemplou por alguns momentos, quase perplexo: -Você esteve comigo todos estes dias e não entende? Eu nunca vou ser mais do que um motivo de chacota. Faça o que eu fizer, consiga o que eu conseguir. O grande autor da peça da minha vida só tem um papel para mim. Quero pelo menos escrever o final.

-Como você sabe?! Ninguém conhece o futuro, as coisas podem ser diferentes!

-Como?! Me explique como? O que vai mudar minha aparência, o que vai mudar minha estranheza? O que vai apagar uma vida inteira de humilhação? As lágrimas corriam soltas, molhando seu rosto e seu peito: -Mas como diria Brás Cubas, não tive filhos. Não transmiti a ninguém o legado da minha miséria.

-A vida não é literatura, caralho! Nada do que você falou justifica se matar! Fazer isto não passa de covardia!

Gritava e enquanto fazia isso buscava em desespero argumentos que pudessem fazê-lo mudar de ideia. Ele a olhava com um olhar de perplexidade:

-Que te importa?

-Se você não queria que eu me importasse porque me apresentou seus pais e seus amigos? Você não acha que eles vão sofrer se você se matar!

Ele virou o rosto e suspirou. Ficou em silêncio por alguns momentos:

-Nenhum deles gosta de mim de verdade, depois que meu avô, que me criou, morreu, não sobrou ninguém que realmente vai se importar.

-Eu vou me importar!

-Porque? Está apaixonada? Não me faça dar risada! Ele era única pessoa...

Em uma atitude completamente inesperada se levantou, colocou a arma na escrivaninha e foi até o banheiro. Começou a molhar a cabeça e o rosto.

"A arma! Ele esqueceu a arma! Eu posso pega-la e ameaça-lo. É idiota, ameaçar matar um louco que quer se matar. Mas eu tenho que fazer alguma coisa. Ahhh, foda-se!!!" Em um impulso saiu correndo, pegou-a e jogou pela janela. Depois foi até a escada e segurou nos dois corrimões, em uma posição que deixava claro que não ia deixa-lo passar.

-Sua, sua...! Sai da frente!

Se pôs em sua frente com o dedo em riste:

-Se não o quê?! Vai me bater? Eu te denuncio e digo que você me brutalizou. Aí, além de não morrer, vai preso!

Sua expressão passou de raiva para surpresa:

-Mas por quê diabos se importa tanto?! Por quê voltou? Eu contratei um serviço, te paguei. Aliás muito mais que o combinado! O quê te importa o quê eu vou fazer?!

Ele se tremia inteiro, a cabeça e o tronco todo molhado. Ela ficou atônita por um instante, olhando-o fixamente nos olhos. Ele têm razão. Por quê?

-Seu medroso do caralho!! Você pensa que é o único que têm uma vida de bosta! Sem conseguir se controlar, se percebeu gritando: Você é estranho? Foda-se! Todo mundo tira sarro da sua cara? Foda-se! É isso, meu amigo! A vida é uma merda e a gente vai vivendo. That´s all, folks!

A sua expressão de perplexidade aumentou ainda mais. De repente ele se virou, foi até a cadeira e se sentou de costas para ela. Permaneceu em frente a escada sem saber o que fazer. Depois de alguns segundos foi até ele e colocou a mão sobre seu ombro. Durante um momento, que lhe pareceu eterno, ficaram em silêncio. Ele o rompeu virando-se para ela e olhando-a fixamente. O olhava também, mas agora com candura:

-Sinceramente, por quê você voltou?

-Porque você me tocou. Não sei como, mas... E quando eu ouvi a música pressenti o que ia acontecer. Eu não podia deixar.

O seu olhar se desviou do dela, perdeu-se naquela distância que ela já havia se acostumado. Levantou-se e foi até a janela. Olhando para fora, disse:

-Por quê não, qual é a opção? Viver por viver, com o coração sangrando até enlouquecer?

Ela foi até ele, que se virou para vê-la:

-Pode ser... Olha eu me tornei prostituta há pouco tempo. Antes eu tentei me matar também e não deixaram. Talvez eu só esteja pagando o favor a Deus. Eu te devolvo o dinheiro quê você me pagou a mais. Se me deixar morar aqui, a gente continua a farsa para sua família e seus amigos por um tempo. E vai se ajudando, não sei.

-E se não der certo?

-A gente dança juntos um último tango argentino...