Quite com o amor

Eram sete horas de uma manhã típica de final de outono quando um senhor, já passados dos seus setenta anos de idade, sentou-se, como fazia todas as manhãs, no banco de uma arborizada praça em uma dessas cidades não muito grandes e que conservavam ainda alguns espaços verdes. Estava bem agasalhado, conforme exigia a época do ano e usava uma boina a proteger-lhe a cabeça, escassa de cabelos, do frio vento que soprava suave, mas constante. Ele se sentava ali todos os dias, normalmente com um jornal ou algum livro, para, além de ler, olhar os que passavam, observar e ouvir os pássaros. Muitos dos que passavam, sequer reparavam no senhor ali sentado. Estavam preocupados demais com a correria cotidiana pela sobrevivência. Passavam com o olhar fixo e perdido, ora para a frente, ora para a tela dos aparelhos celulares. Tolos! Pensava o senhor. Tolos porque não percebem que a vida, quando sobrevivida apenas, não nos deixa perceber a simplicidade do que realmente importa.

Aquele senhor costumava ficar horas ali, sentado, lendo e vendo o tempo passar. O tempo tirara-lhe a velocidade dos movimentos, mas esquecera-se de tirar-lhe a lucidez das ideias. E isso talvez o martirizasse. Nesta manhã, pouco depois das oitos horas, sentou-se ao seu lado um jovem homem, na casa dos trinta anos. O tempo e a experiência no trato com as pessoas (fora professor por mais de 30 anos) deram àquele senhor a capacidade de perceber o estado emocional das pessoas. E o homem que se sentara ao seu lado parecia não estar bem.

Alfredo, o senhor que se sentava ali todos os dias, percebeu porque o homem se sentou de forma brusca, reclinou a cabeça para trás, respirou fundo, como se buscasse ar e em seguida voltou a cabeça para a frente e ocultou-a entre as mãos. Demonstrava tristeza, angústia e sofrimento. Parecia querer chorar. Alfredo resolveu tentar ajudar:

– Está tudo bem, meu jovem? Posso ajudar? – Nesse momento o homem desandou a chorar copiosamente. Alfredo deixou que ele assim ficasse por alguns minutos e depois ofereceu um pouco de água para beber e papel para secar as lágrimas. Outra coisa que a vida fez: deixara Alfredo um homem prevenido. Trazia sempre consigo uma garrafa de água e papel higiênico ou lenços de papel.

O homem aceitou a oferta de Alfredo, ergueu a cabeça, com vergonha de como estava, secou as lágrimas da face, respirou fundo e tomou a água vagarosamente e agradeceu:

– Muito obrigado, senhor!

– Posso ajudar? – repetiu Alfredo.

– Não sei! Minha vida parece desabar...

– Conte-me o que está ocorrendo. Às vezes o que as pessoas precisam é apenas serem ouvidas. De repente, um velho que já passou dos setenta possa falar-lhe algo que o ajude. Por que não tenta? – quando Alfredo falou isso, o jornal do dia já ficara de lado.

– Briguei com minha esposa. Ela vive reclamando que trabalho demais, que não dou atenção a ela, que nossa vida íntima já não é mais a mesma, que não temos vida social, desconfia que tenho outra pessoa. Hoje, logo cedo, brigamos feio e trocamos ofensas graves. Eu saí para trabalhar e ela ficou em casa, chorando e com raiva.

Alfredo fechou os olhos, respirou fundo como a se lembrar de algo e após alguns instantes, perguntou:

– O moço tem tempo para ouvir uma história?

Júlio, este era o nome do homem, olhou para o relógio e respondeu:

– Sim, tenho!

– Pois bem, vamos começar! O que vou dizer a você, aconteceu comigo há muito tempo. Casei-me jovem, movido pelo entusiasmo, desejo, paixão e também pelo amor, claro. Isso de ambos os lados. Mas quando o amor não é o primeiro e mais forte dos motivos, não há segurança de que a relação vá dar certo. Com o tempo, esse amor foi crescendo, mas o prato da balança pendendo mais para um lado. Eu tinha o mesmo problema que você me relata: em muitos e muitos anos dei mais atenção ao trabalho, a mim mesmo e deixei de lado as coisas simples do cotidiano, como o abraçar sem motivo, o presentear sem motivo, o falar sem motivo, o sair sem motivo, o beijar sem motivo, o dizer “eu te amo” de forma espontânea. A preocupação em pagar as contas ocupou o primeiro lugar. A falta de objetivos claros, o comodismo excessivo, a auto confiança em demasia foram minando dia a dia a união. E olha que não foi por falta de aviso. Recebi vários, porém, não dei a devida atenção! Junte-se a tudo isso, meu filho, as vezes em que fui covarde e pratiquei o ignóbil ato da traição. Fui perdoado várias vezes, mas nunca aprendi direito com os erros. Não há amor que resista. O amor não pode ser um cabo de guerra para ver quem ama mais. O amor não pode ser corda com a qual alguém puxa outro do precipício da própria perdição. O amor é, sim, corda em que os dois empregam força igual para remover obstáculos pesados. é corda com que os dois se amarram sem darem nós. Amor sem reciprocidade na mesma medida não resiste. Da última vez, há mais ou menos trinta anos, não sei se não houve como lutar ou se a confiança em que tudo seria igual às outras vezes me fez deixar as coisas correrem frouxas. Esse foi meu erro fatal. Separamo-nos sem brigas. Eu não quis ver, não quis acreditar nos sinais que a vida me dava e tudo se acabou de vez. Restou ainda respeito e carinho mútuos, pincelados com certa dose de mágoa. Arrependi-me amargamente. A consciência cobrou-me o preço justo. A culpa me perseguiu por muito tempo. A reação foi proporcional à ação sofrida e eis-me aqui hoje.

– Mas o senhor não pediu perdão, não foi atrás, não tentou lutar pela reconquista? – perguntou Júlio.

– Claro que sim, meu rapaz! Claro que sim! Mas quando o coração está por demais ferido e cansado, ele se cala e ouve a voz da razão (que pode enganar também). De nada adiantaram os pedidos de perdão. Perdão aliás, meu jovem, não significa aceitação de tudo de volta. Antes disso, o perdão é tirar um peso das costas e da consciência. E tem mais: o amor é como planta, tem de ser regado diariamente e na medida certa. Eu não soube regar a minha planta. Houve dias em que reguei demais e muitos e muitos outros em que reguei de menos. Fui perdoado, mas tive de carregar esse fardo de arrependimento por toda a vida. Todo ser humano tem direito de buscar a própria felicidade e se não a encontra em um lugar, busca-a em outro. É a lei da vida.

– E ela? – perguntou o agora mais calmo, e ainda comovido, Júlio.

– Bem, ela refez rápido a vida. Buscou a própria felicidade. Talvez tenha encontrado, talvez não. o certo é que se as conexões nunca foram completamente rompidas, também não foram retomadas. Mágoa e insegurança impediram. Ela partiu para a pátria espiritual há pouco tempo e eu fiquei aqui amargando os últimos anos de minha existência.

– Sinto muito! O senhor não refez a sua vida?

– Até tentei por algumas vezes, no entanto, eu nunca esqueci o que se passou. Não consegui desentranhar da alma tudo o que contei. Tive alguns momentos felizes, mas a marca de um grande amor não se apaga. Acabei me acostumando com a vida solitária. E a propósito, não sinta muito por mim! Sinta por você! Se ama realmente sua esposa, vá agora para casa, peça perdão, perdoe e se perdoe. Dê mais atenção às coisas simples do dia a dia. Contas pagas e sucesso profissional talvez façam bem ao ego, mas não trarão felicidade. Vá! Procure-a e salve seu casamento, salve sua felicidade, salve e reconstruam em bases sólidas o amor de vocês. Não pague nunca na mesma moeda essas coisas de relacionamento. Satisfaz por um breve instante, mas deixa marcas indeléveis por toda a vida. Nesse recomeço que vocês terão, coloquem uma pedra em tudo o que passou. Se o sentimento for mútuo e verdadeiro, vocês serão felizes. Por outro lado não se esqueça de que ser feliz não significa ausência de momentos difíceis. Vá logo, antes que seja tarde! Não deixe acontecer com você o mesmo que aconteceu comigo.

Júlio abaixou a cabeça em sinal de concordância. Levantou-se e antes de ir embora deu um abraço carinhoso naquele senhor que lhe abrira os olhos. Partiu direto para casa, nem avisou no trabalho. Queria um recomeço diferente e estava disposto a tudo o que fosse necessário para isso.

Alfredo voltou-se a sentar-se após o abraço. Fechou os olhos cansados, refletiu por um breve instante e deixou duas tênues lágrimas rolarem por sua enrugada face. A conversa com aquele rapaz fizera-o lembrar do filho que nunca tivera. Vão dizer que é paradoxal, mas e daí? Alfredo então abriu os olhos, olhou para o céu e disse:

– Meu Deus! Minha conta já não está paga? Não suporto mais! – baixou a cabeça, pegou um lenço de papel, secou as lágrimas que restavam, levantou-se e foi para casa.

Alfredo não percebeu (ou não lhe foi permitido perceber?), mas durante todo o tempo da conversa com Júlio, alguém estava lhe observando e comovida dizia:

– Estou lhe esperando, meu amor! Estou lhe esperando!

Júlio refizera a vida com a esposa e mudara as atitudes. Seguira direitinho as recomendações de Alfredo. Ainda voltara algumas vezes à praça onde conversara com aquele velhinho, no entanto, jamais o encontrara novamente. Perguntara a algumas pessoas sobre o velhinho que ficava ali sentado todas as manhãs e soubera que há vários dias ele não aparecia. Júlio entristeceu-se, pois não pudera agradecer de verdade pelas palavras e pelo incentivo que recebera num momento difícil de sua vida. Mas algo em seu coração dizia que estava tudo bem.

Lá do alto, dois pares de olhos felizes o observavam. A conta de Alfredo havia sido paga!

Cícero – 24-05-2020

Cícero Carlos Lopes
Enviado por Cícero Carlos Lopes em 24/05/2020
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