O Pescador e o Nevoeiro

“O sol, em seu esplendor, dissipa a névoa da manhã..., mas ao cair da noite, são seus olhos que me guiam no denso nevoeiro que minha alma se tornou.”

Estou a dois passos da porta...

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Me lembro daquela manhã como qualquer outra, da janela da cozinha avistava papai recolhendo as tarrafas jogadas na noite anterior, ‘a noite confunde também os olhos dos peixes’, ele dizia, enquanto sorria ao sol e agradecia por cada oferta que o rio lhe entregava. ‘Filho, estão pesadas... venha me ajudar’ e então eu corria, mesmo sem alegria, para resgatar o meu herói. Desde que me recordo, éramos apenas ele e eu e nas poucas vezes que falava sobre minha mãe, ele dizia: ‘os sonhos dela quem realiza somos nós Oskar’.

Eu dei de ombros a todos os provérbios que meu pai proferia até o dia em que conheci Merei. De sorrateio a observava, caminhando pelos seixos enquanto o sol iluminava seus cabelos e deixava meu dia mais brilhante. Eu, ribeirinho de nascença, que já conhecia o mar e suas penumbras, me encanto pelo olhar doce daquela menina. Seus vestidos, sempre esvoaçantes pela brisa que vinha das águas combinavam com os cabelos bagunçados e os pés descalços que hora ou outra se refrescavam na “beirinha d’agua”.

Confesso que receio eu sentia. Soube por comentários que o pai dela era homem importante e a mãe bondosa como ninguém, mas eram qualidades deles e não minhas, o que tinha eu a lhe oferecer? Passei a acordar mais cedo e permanecia o dia nas águas na esperança de vê-la. Parece bobagem eu sei, mas quando ela me olhou, senti meu peito aquecer e mesmo sem saber o que falar, um dia a margem me acheguei:

-Olá, como está?

-Bem e você?

-Bem. Sabe assar peixe na brasa? Precisam ser grandes e nem sempre dá para provar a pele que amarga.

Ela sorriu. Eu poderia falar do seu sorriso que de relance via, ou do ponto luminoso nos seus olhos que eu sabia que existia, mas não tinha coragem de encarar. Falava sobre peixes de escama e couro, de como as corvinas de água doce possuíam em sua cabeça pedras ‘curativas’. Eu pouco sabia e medo sentia de parecer simples demais, mas quando ela me sorria, até me esquecia quem eu era.

Naquela região eles diziam que o calor do dia pouco influenciava a noite que viria. Da mesma janela pouco se via em meio à noite e ao denso nevoeiro que lá fora existia. Com névoa ou não, todas as noites meu pai seguia rio adentro para atirar as tarrafas, mas naquela noite resolvi eu ir, meu pai parecia cansado enquanto preparava o ensopado de peixe.

- Pai, deixe que essa noite eu mesmo vou.

- Espere ao menos para comer Oskar, depois você vai.

- Prefiro comer na volta, não apague o fogo, assim posso me aquecer. O nevoeiro parece mais denso, não quero que se arrisque.

Meu pai consentiu, verificou uma a uma as tarrafas e me contou onde devia jogá-las, as colocou no canto do pequeno barco, junto com os remos, um peso a ser usado feito âncora e uma velha lamparina cuja chama parecia não clarear.

- Filho, quando sentir a leveza da correnteza pare de remar, jogue o peso maior e espalhe as redes, pela manhã encontraremos as boias e as recolhemos. Não vá muito longe, você conhece as águas como a mesma benevolência de um livro pela capa... nunca as subestimem.

Eu com frequência estranhava as variáveis de sabedoria e simplicidade de meu pai. Era mais que conhecimento de pescador, como se a dor fosse a pedra gigante que ocultasse a caverna dos saberes reais, meu pai já vivenciou tanto e nada gostava de manifestar, mas eu o amava e entendia, tanto melhor que o amor é o respeito.

Com pouco de esforço me ajudou o colocar o barco na água e me adentrei rumo a tarefa. Há poucos metros eu quase nada via de minha casa, era um vulto mais claro em meio a escuridão da mata. As águas me arrastavam sem a necessidade do remo, o nevoeiro parecia denso e pegajoso como se tentasse impregnar minha pele e me tornar parte dele. Meus sentidos pareciam querer me confundir, não sentia o ar adentrando os meus pulmões como deveria, jovem que era, não entendi acontecer. A correnteza aumentou, e mesmo o forte fluxo não desanuviou em nada a densidade da névoa sobre as águas. A lamparina parecia não iluminar e sua chama se reduzia a uma pequena fagulha.

O barco simplesmente parou.

Não o senti bater em nada, é como se alguém o tivesse segurado. A correnteza permaneceu forte, mas sequer balançou o barco. A pequena fagulha se apagou, não sabia exatamente em que local do rio eu estava, não conseguia ver as estrelas, nem mesmo o céu sob minha cabeça, a névoa era fria, parecia querer derreter minha pele feito ácido quando me tocava e meus ossos doíam.

- Que belo menino aquela garota pôs ao mundo - A voz melodiosa parecia estar por toda parte – Finalmente eu posso ver quem será o próximo a me desafiar.

O silêncio parecia adequado.

- Vejo que é quieto feito seu pai, o tal cartógrafo que não conhecia o mar. Se fosse feito tua mãe já teria me proferido alguns palavrões e teria chamas em seus olhos castanhos. Óh! Pobrezinho, se lembra de sua mamãe? Foi das minhas maiores alegrias ver aquela garotinha abusada morrer em minha frente, tudo para proteger uma cria que em nada parece ela! – a risada que veio em seguida estremeceu minha alma.

Usar os remos era inútil, o barco não se movia. Era frio o ar que me cercava e minha pele sentia pequenos toques como línguas de serpentes. Era difícil crer no que era real ou não, eu fechava os olhos diversas vezes na esperança de despertar daquele transe enquanto a voz continuava a falar sobre minha mãe.

-Chega!! Eu não sei quem é ou muito menos o que quer de mim! Me deixe sair daqui!

-Me parece fúria? Olha só... parece que algo dela despertou em você. Quantos anos tem? 16? Já passou da hora meu querido... se não for em busca dos ensinamentos e correr atrás de todo tempo perdido nosso encontro não terá graça alguma. Sua mãe sempre me divertia, faça o mesmo por mim queridinho.

A voz parou e senti diversas serpentes de vários tamanhos saindo das águas e adentrando o barco, elas não me atacavam, mas pareciam preencher todos os espaços e então eu pulei.

- Até breve, Oskar, mas antes sobreviva as águas.

A água estava tão fria quanto a névoa. Eu não tinha noções de espaço, se me dissessem estar nadando em uma bacia d’agua ou em meio ao oceano, diferença alguma faria. A voz de fato silenciou por completo, então parei de nadar. Na minha frente eu vi uma pequena luz ao longe se acender, como um farol na costa. A luz foi ficando mais forte, quebrando o nevoeiro como quem dissesse, ‘me siga pescador’ e então eu nadei... nadei no silêncio, nadei em meio ao medo, nadei em meio ao cansaço, nadei em meio a incerteza... eu jurava ter ouvido no fim da luz a risada de Merei, e senti que de fato ela era a minha luz no nevoeiro.

Pouco tempo depois senti os seixos nos pés e desabei em sono profundo na prainha.

Na manhã seguinte meu pai e outros pescadores me encontraram, estava com a pele pálida atirado sobre os seixos a poucos metros da entrada de uma pequena trilha, que dava acesso a casa dos Devenes.

- Filho, te pedi que não fosse longe, o que aconteceu? Pelos deuses, pensei que tivesse perdido você. Procurei por horas e horas junto com os outros pescadores, uma das cozinheiras dos Devenes encontrou você aqui e nos chamou. Como se sente?

As palavras do meu pai pareciam goteira em minha mente. Espaças, sem muito sentido, meu corpo doía, sentia fome, de fato era difícil descrever aquilo.

- Pai, achou o barco? Estava cheio de serpentes ontem. Eu juro ter ouvido uma voz falando comigo no nevoeiro, devo ter perdido os sentidos e caído na água, me perdoe.

- Tente se levantar, vamos para casa e depois de um banho quente e uma boa refeição nós conversaremos... tenho muito para te falar.

Meu pai cuidava de mim como quem quisesse me proteger de tudo, naquele dia, antes da tão esperada conversa, ele nada permitiu que eu fizesse. Me deixou acamado, feito doente nas últimas, trazendo comida aos montes e aferindo se minha pele estava quente, já estava a sentir os limites de tantos cuidados quando finalmente o questionei.

- Pai, se foi apenas um sonho meu, por que cuidas de mim como se fosse algo real?

- Filho, existem coisas que dificilmente podemos explicar pela lógica, elas são como são e cabe a nós apenas interpretá-las e seguir o caminho da melhor forma. Consegue me dar detalhes do que aconteceu?

Então eu contei, e me atentei a todas as expressões que o rosto de meu pai me apresentava ao longo do que ouvia e dos olhos brilhantes a um pequeno instante de chorar, eu via medo, via saudade, via amor, eu conseguia ver minha mãe.

- Oskar, sua mãe era um legado. Sei que não falo muito sobre ela, mas desde sua partida prometi que transformaria nossa vida em algo simples, repleto de paz. Era o sonho dela ser pescadora. Sua mãe vivia o conflito, mas em certos momentos ela transmitia paz. A guerra não permitia que ela deixasse de sonhar, mas o que sua mãe enfrentava ia muito além de homens ruins, o legado de sangue que ela carregava a transformava em uma caçadora de monstros. Houve mal que ela não pode vencer e se deu como sacrifício em sua proteção, não se sinta mal ao ouvir isso pois sei que ela faria o mesmo quantas vezes fosse necessário pois se sacrificar por quem se ama é honroso, digno... é redenção.

Ele deu uma pequena pausa, como quem procurasse escolher por palavras melhores.

- Por muito tempo eu pensei que você não seria um legado, pensei que longe dos seus seria livre para escolher como seguir, mas legado é legado e não se altera o destino. O que vivenciou essa noite foi algo que sua mãe vivenciava todos os dias da vida e te peço perdão por não ter alertado você antes e permitido que passasse por tudo isso sem uma explicação.

-Pai...

- Eu contarei a você toda a história e ao final terá uma escolha difícil a fazer, talvez a mais difícil até hoje.

Então ele contou. Contou sobre a infância difícil de minha mãe por ser uma garota a carregar o legado de caçadora, contou sobre sua beleza e de como se apaixonara por ela quando a conheceu, falou sobre a força com que usava uma espada e a maestria em atirar flechas, falou sobre o respeito que adquirira ao longo dos anos e das árduas batalhas que ela enfrentou, mas também falou sobre amor, o amor que ela sentia pelo filho tão sonhado e pela família que construíra.

-Quando sua mãe e eu finalmente nos casamos, eu sabia de todos os riscos que corria ao permanecer do seu lado e meu filho, eu não faria outra escolha, eu preferia morrer ao lado de sua mãe ao estar seguro em qualquer outro lugar, ela sempre me protegeu, sempre voltava para mim após as caçadas pois dizia que em nós ela tinha paz.

- Eu entendo, mas porque se refere a eu ter de fazer uma escolha?

- Eu vejo em seus olhos todos os dias que vamos até o rio, é Merei que te faz sorrir e só ela completará os vazios do teu peito, porém, tens um legado, coisas como ontem voltarão a acontecer com mais frequência e você precisa estar preparado. O mal não irá esperar você estar pronto, ele simplesmente te acometerá e resta a você estar preparado ou não para a luta. Por muitas vezes vieram atrás de mim como forma de provocar sua mãe, farão o mesmo em relação a você e Merei.

Muitas informações para organizar, eu me sentia confuso e dolorido.

- Se escolher seguir o legado, terá de aprender tudo sobre a arte das lutas e o mundo dos monstros, irá se assustar e muitas vezes pensará em desistir. Talvez leve mais tempo do que espera, mas um dia a preparação se findará e estará pronto para proteger a si e a quem você ama.

- Mas pai, se eu escolher seguir, terei de me afastar de Merei.

- Prove a ela que a ama, mesmo sem usar palavras meu filho, é como uma canção cujo trecho não tem tradução e que somente você pode entender, porque sente... e um dia volte. Volte para ela quando for capaz de protegê-la assim como sua mãe fizera por mim.

Horas passaram, a noite chegou. Naquela noite não havia tarrafas para arremessar, havia apenas meu pai e eu vagando em pensamentos e escolhas, e da janela da cozinha, olhando novamente para o nevoeiro, eu escolhi.

O dia seguinte raiou, meu pai juntou algumas varas de bambu e fomos até o rio, eu estranhei inicialmente o toque da água nos meus pés, mas aceitei e continuei. A pesca fora farta e o peixe mais belo não deixei que meu pai vendesse, aquele seria um presente. Fui até minha casa, escrevi um pequeno bilhete e coloquei dentro do peixe com um seixo do Rio. Meu pai me contara sobre a lenda dos três seixos e de que fora assim que minha mãe lhe demonstrara o amor que sentia. Fui até a prainha e de longe avistei Merei:

-Olá!

-Olá Merei, como está?

_Bem e você?

-Bem, obrigada. Trouxe um presente. Pode entregar a seu pai e dizer que foi eu?

-Ele não sabe quem é você.

- Um dia saberá.

Ela sorriu um tanto confusa, me despedi mais uma vez sem tocá-la, com a sensação de que não veria aquele sorriso por muito tempo. E realmente não vi.

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Continuo há dois passos da porta e não sei se consigo dar o próximo.

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Papai e eu nos afastamos da vila de pescadores e passei a aprender o necessário sem nunca tirar Merei dos pensamentos. Anos se passaram, anos de luta, anos de dor, anos de saudades que dificilmente pude enumerar. Por vezes me via caminhando sentido ao meu lugar, me imaginava olhando para Merei e explicando as razoes da minha partida, esperando ouvir dos lábios dela a expressão ‘eu te perdoo’ e tentando viver a vida que sempre quis. Certo dia, cansado da distância e revoltado com o destino, embrulhei um segundo seixo em um tecido escuro, coloquei- o em uma bolsa e segui rumo a casa dos Devenes, mais de uma década havia se passado, mas eu reconheceria o caminho como se fosse ontem, apenas avisei meu pai, com a idade já avançando, e segui:

- Pai, sua benção, irei ao encontro de Merei.

- Que os deuses o abençoem. Sente-se preparado para protegê-la?

- Sinto necessidade de vê-la, eu preciso ir.

Parti com o pouco que precisava sem sequer pensar nos dias que passaria a fio, caminhando noite e dia ao encontro dela. No caminho ouvia comentários de camponeses sobre as atrocidades que estavam acontecendo, soube que Mary Devene havia falecido e que o pai de Merei estava desaparecido. A urgência era maior a cada comentário, mas não sabia sequer como chegar até ela. Soube que ela morava na mesma casa, que continuava sozinha e que a ‘senhorinha’ era bem quiista e amada por seus escravos.

Quando finalmente cheguei perto da casa era meio do dia, não saberia bater a porta principal, então dei a volta pelos fundos, nos jardins, quando ouvi vozes. Me escondi atrás dos arbustos e avistei um casal que caminhava de braços dados rumo a uma mesa posta para o almoço.

Era ela, pelos deuses, era Merei. Tão linda como sempre fora. Estava acompanha de um homem elegante, ao que parecia bem instruído que a fazia se sentir à vontade. Eu gostaria de ouvir melhor sobre o que falavam, gostaria de ser eu quem estivesse lá, sentado a sua frente, provando algo de comer e falando sobre a vida. Ao meu lado, curiosamente, um pássaro negro gorjeava, como se estivesse irritado com os fatos que me incomodavam, o pássaro e eu, escondidos atrás do arbusto, tristes, enciumados. Poucos instantes depois a ave me encarou e com rapidez bateu asas em direção as proximidades da mesa, calando os comentários que viriam.

O pássaro teve mais coragem que eu. Eu precisava apenas vê-la e consegui. Poucos instantes depois eu parti, sem saber o que de fato senti ao ver a cena, mas em momento algum amando menos a nova Merei que ainda era a minha.

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Um passo, agora falta apenas um passo.

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Mais um tempo se passou, fui informado de que coisas terríveis aconteceram aos Devenes e os seus que habitavam a casa. Soube que a ‘senhorinha continuava lá’, que o belo homem que a acompanhava aquele dia estava apenas de passagem. Eu assumi o meu legado, me tornei caçador e acreditava estar pronto para regressar, contar a ela sobre a minha história e dizer que não foi uma fuga, que fora apenas um mal menor, gostaria de contar a ela sobre o nevoeiro e que em todos esses anos fora ela que libertou meu peito da escuridão completa. No bolso dois seixos, um embrulhado meses atrás e o outro apenas ali, polido e negro como quando o coletei da prainha.

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Um passo, seguido de duas batidas.

Esperava que um empregado atendesse a porta, mas não. A suavidade do abrir da porta que revelava os cabelos agora presos emoldurando seu rosto, a suavidade da mão encostada na porta, o olhar com ponto de luz que por anos não encarei e o sorriso que se abria cada vez mais largo...

-Oskar!

Não pensei que ela se lembraria, não pensei que meu peito transbordaria de emoção.

-Olá Merei, trouxe um presente.

As mãos se esticam, uma com um embrulho. Outra com o seixo polido e eu só consigo notar a emoção em seus olhos.

-Ainda faltavam dois, me perdoe por demorar tanto tempo.

_ Eu sempre soube que você voltaria.

E, enfim... o Primeiro toque.

Córdia
Enviado por Córdia em 05/09/2020
Código do texto: T7055421
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