crônica do compasso do irremediável

O IRRECONHECÍVEL

Clarões apagaram-se.

de… meu deus... a cova da minha cabeça esvaziou-se com paixão catedrática e nela foi derramada uma outra coisa, outrora em trânsito restrita a um corredor solitário. Este é um tempo que embarca também todos os tempos, à medida que o pólen amargo rescende até os céus, que fluem do azul para o cinza, do vermelho para o escuro; jamais sintonizando nunca o violeta nunca o preto. Só o cinza conserva-se inteiro; eu andava com uma discrição até excessiva nas ruas maquiadas de infinitude guiado por tantas fomes que meu estômago já me era um mistério. Sujo e com o andar abatido. Morto demais para sonhar. Num segundo qualquer, ouço sons de sapatos particularmente urgentes misturando-se ao som dos meus. Entre as árvores, um corpo surgiu. A mulher, de olhos quietos com desesperada expressão, puxou meu rosto para trás. A cor do olhar caía sobre os ombros tensos numa fração de obscenidade ou esperança muito escassa, que imediatamente se desenrola em decepção, tão trêmula como o ruído do angustiante trânsito joinvilense, que no alvorecer é só outra metáfora. Em silêncio andou embora, sem sorrir. Assisto ela ir, não tão moído de confusão como eu queria estar. Noto o sobretudo que veste. A postura cansada. Os sapatos escuros. A lua alinhava-se no canvas rasgado da ficção que antecede uma quebra, às cegas, pelo nada. E a cegueira do nada representa até mesmo uma virtude para ti que às vezes vê até demais e às vezes não vê. Chego em casa. Abro a porta e o fogo do fogão estava aceso e azul. Em segundos a chaleira solene apitou e é quando ela apita que todo sujeito aparentemente são se entrega à loucura. Meu irmão sentava na cadeira com os braços sobre a mesa como se reproduzindo um autorretrato específico de Renato Guttuso – meu irmão não obstante teve desde adolescente o marxismo dividindo espaço estreito com o sangue nas veias; sua frase predileta era uma em que ele me dizia, grosso modo, que o acaso da história que se repete de novo e de novo e de novo fatalmente sempre de modo estúpido e angustiante é fruto da ideologia alemã; e se conto este detalhe é somente para confessar que desde a primeira vez que ouvi as palavras ideologia e alemã, que combinadas tornam-se para meus ouvidos tão charmosas, me perseguem. Também seria crível comparar a imagem que tive do meu irmão neste reencontro inesperado como uma pose para uma pintura muito imprecisa do Raphael Soyer, sem cigarros. Enfim, eu finjo saber de pintura muito mais do que eu verdadeiramente sei. Suas pernas estavam cruzadas de maneira que os joelhos se tocavam. Vestia botas, como de costume, além do casaco desarrumado e desgastado preto. O vento seco da janela fazia com que o cabelo meio longo flutuasse em ondas harmônicas e grosseiras. Olhou-me com um afeto estranho, de aguda agonia. Nada nada reminiscente ao afeto que eu conheci e amei em outros tempos; tempos muito ulteriores a mil novecentos e trinta e seis.

Não fazia muito frio (fazia quinze graus), porém meu esqueleto pouco se importou e congelou e calou-se. Fui à cozinha desligar o fogo, fiz o café e permaneci em silêncio, nervosamente. Meu irmão é quem deveria dar a primeira palavra, se explicar por sua ausência, o sumiço longo. Ele pensava aparentemente no que dizer e pela primeira vez vi meu irmão de sangue; fóssil, hesitar ao pensar no que falar comigo, carregando em seus olhos de poeta de uma geração moderna extinta um aspecto novo de inferioridade. Eu era aquele que costumava cumprir este papel, de inferioridade, na peça absurda da nossa família. Em ocasiões repetitivas e sem muitas graças, quando nós ainda dividíamos um quarto, tive o desejo quase hormonal de pertencer ao mundo que meu irmão viveu; porém também nunca pertenceu. Não era só por ser como ele, provavelmente. Meu irmão levantou o rosto e olhá-lo tornou-se uma tarefa desprovida de pavimento que beirava com desequilíbrio a vergonha e o sublime, então disse para mim com uma inquietude grosseira, “Eu conheço bem esse olhar, mas não posso começar meu dia com uma confrontação. Eu vou embora ainda hoje e não posso tocar as mesmas teclas confrontosas contigo, não tenho o tempo, ainda mais com você que sei que tem razão”. Penso em um poema, depois em uma paixão frustrada, antes numa paisagem árida. Eu queria ser você, ou uma cópia menos infeliz do que você é, E como… e o que é que eu sou? Insensível, eu disse, insensível. Minhas palavras magoam. Toda sua expressão cinza se acinzentou mais; arrependimentos que nos enrolam apertado depois de palavras verdadeiras. Coçou o cabelo com os dedos e puxou ele para trás revelando a pele da testa. Eu sempre compreendi suas inseguranças, irmão meu, e não só te compreendi como mantive as minhas, em segredos, com tentativas de manter mistérios, porque era assim que a dor doía menos para mim, sob a anestesia da ignorância; mas também sei que elas jamais foram um verdadeiro mistério para ti pois teu olhar assim como o meu atravessa até as retinas mais anormais.

— Provavelmente... e isso não é algo ruim, mas ainda é alguma coisa: você se sente único porém você não foi a primeira pessoa nem de nossa “família” a ser abandonada.

Encarou-me serenamente e continuou:

— A mãe foi. Eu fui. O pai foi. Por último: sim, você também.

— Quando o pai te deixou comigo foram uns dias. É a diferença do ano para o dia que falta pra você compreender; você voltou hoje!... André… Hoje. Disse com muito sono.

Meu irmão assentiu mexendo o rosto sem vontade, piscou excessivamente e num ritmo um pouquinho estranho; alcançou no bolso do casaco um diário preto de folhas velhas (nele havia um poema escrito por mim) e o folheou e folheou até encontrar uma página em branco; artefato raro. Disse-me oprimido entre as orelhas violáceas, “para mim esses diazinhos pareceram uma eternidade”, e resta portanto às costas da relatividade toda poderosa inundar nossas clavículas magras. A luz do quarto era um amarelo intenso e objetivo. Abria portanto suas costuras para nossas sombras que se derramavam pelo espaço coberto de poeira como um céu pintado de índigo derrama refúgio para rostos de olhos tristes de estranhos familiares, ou familiares estranhos, olhos que vêm engatinhando de um espaço onde a vida se dá dia após dia contra a beleza & contra a dor e não obstante entre a beleza e dor, no fundo áspero dos espinhos.

— Você não entende, você é bobo! disse para meu irmão.

Meu quarto chiaroscuro era particularmente mal-mobiliado, com uma cama de solteiro de frente prum guarda-roupa com um espelho arranhado e meio sujo que cobria a área completa de um dos três painéis; uma cadeira preta em cima de um tapete amorfo retângular que trazia para mim uma sensação estranha e atraente de conforto; uma mesa em frente a cadeira que tinha sobre ela os quatro livros que eu estava lendo no momento, uma xícara de café, cabos, cartas, polaroides que valiam muito mais que eu todo, sujeira transcrita em pó e meu computador velho; nas paredes haviam pequenas gotas de sangue escuro entranhados na tinta gelo; espasmos de folhas com rascunhos de textos e poemas e partituras e composições, solidificando um firmamento de pesada escuridão para todos os passos, na forma d’um anel jazzístico em torno do piano outrora de meu pai, agora meu, que ocupa agora mais de um terço muito precioso do meu quarto; também casulo, onde música frequentemente escorria do concreto como eu imagino que seiva escorra do floema em processo de óbito. O assoalho era quase oculto, uma vez que sobre ele planaltos e depressões de folhas dormiam um sono que para mim representou por anos minha concepção de interminável, fermentando neste meu espaço particular ruidoso uma atmosfera irresistível e sinfônica de esperanças perdidas, como se a concepção de alguma coisa além da eternidade fosse só igual uma nota que só se permite ser tocada uma vez e se vai.

— Quando tu foi embora, pensei: sobreviverei bem. O tempo cura tudo todas as enfermidades. Todas as doenças. Mas este pensamento só foi mais uma daquelas coisas passageiras iludidas da minha inocência, da minha ingenuidade… Aos poucos e poucos não pude mais negar outro próprio pensamento, que grita para mim à medida que essa frustração dissimulada e compreensiva pressiona meu peito: o tempo é uma doença. Porém não valhe a pena pensar nisso...

Meu irmão pegou com a mão direita uma caneta e escreveu no papel, curvado sobre o diário que segurava nos joelhos todo envolvido em atenção. Tomei um pouco do meu café e o servi em seguida. Me agradeceu em silêncio. Bebeu segurando a xícara com as duas mãos. Não consigo mais sentir o cheiro do café, reclamei, mantendo uma graça mal-humorada na voz, meu irmão aproximou o nariz da xícara e a cheirou, aliviado e aparentemente grato por ainda ter um olfato em funcionamento pleno. Não entendo como o talento é tão misterioso, cruzei os braços no que meu irmão rompeu o silêncio e cuidadoso disse:

— Sei como é estranho eu estar sentado aqui depois de todo este tempo… todo este tempo. Porém, não serei eu quem lhe dirá que nós nascemos sós e vamos morrer só. Este mundo pequeno que mais se assemelha a um terreno baldio tenta noite e dia fazer com que nós nos esqueçamos disso, pode tentar desfigurar a solidão mas eu não esqueço. Nem quero perdão independente de tudo e por mais doloroso que seja para mim admitir isso tanto para ti como para mim também... não quero nem preciso do seu perdão.

...Me contentei em te olhar, calado, com as lágrimas firmes molhando minha pele vermelha, de confluente escuridão. Não posso fazer muito além de permitir que este veneno impregne minhas veias me lembrando com desagrado do fato cru, cruel, de que são nestes momentos inesperados que minha carne adota sua versão mais indefesa. Ninguém pode comer amargura. Eu pouco sei mais. Com os olhos no teto lembro de ter resmungado:

— Estou só, no escuro, esperando a morte que não chega nem por palavra nem por som preso nessa nossa casa, que por tempos foi nosso lar, nosso templo: agora somente minhas ruínas; teu sofrimento me importa, tua culpa também me importa, só que nada disso é correspondido por ti, André, porque você não se importa com a validade vencida dessa minha existência e o que eu sinto, penso, falo, escrevo, toco, analiso; e se escrevo para o fantasma do pai é só por desejos sujos que nem ouso pensar direito sobre até porque ele também não se importa, nem nunca quis se importar quando podia, e eu não o que você faz aqui. Sei que pra ti eu já venci há tempos. E nunca saberei se vou realmente te perdoar. Minha violência inútil contra o passado teve pausa. André descruzou as pernas e aparentando ainda processar todos os morfemas do meu desabafo, olhou-me com encanto peculiar e distinto como se encarnasse por uns instantes singelos uma cópia perfeita do homem amarelo. Andei desapressado em círculos irregulares ao redor do tapete do meu quarto, contornando os móveis apertados, com cuidado, para não pisar nos livros, e toquei continuamente as superfícies dos romances que passavam pela altura das pontas dos meus dedos, abrindo mares ásperos minúsculos de limpeza a partir da extração do pó; vi as partículas brilhantes flutuando com suas direções ambíguas – e no mesmo instante em que estes grãos eram livres de todos os obstáculos mentais humanos, sucumbiam a todos os obstáculos imagináveis da natureza e de todo o resto. Nessa mesma tarde descobri que meu irmão matou nosso pai. Não creio que reagi de imediato, ao menos não fisicamente; permaneci paralisado, pensante, me divertindo com imagens distorcidas dadaístas muito insignificantes, depois me recordo de ter rido, no clímax da incompreensão gargalhado, com a minha mão direita quase fechada apoiada em minha sobrancelha esquerda; enquanto meus olhos escancaravam o chão eclesiástico. Não tento descrever, tento entender. Porque desisto da mágica mágica espera, um abrigo tão confortável, e me torno agora prisioneiro destes bichos criados pela razão. Já falou com Mariane? o transtorno teve intermitência. Não, meu irmão me disse. Posso dormir aqui essa noite? O sofá é teu. Disse com a voz evasiva. E saí.

A mesma janela que há pouco bagunçava os meus cabelos agora bagunçam os teus cabelos. Meu irmão está dormindo, ele não tem um sono muito pesado, não faz muito barulho, disse. São quatro da tarde, você respondeu, e ouvir tua voz despertou em mim uma ofensa que pesou meus ombros articulando minha voz para um tom de desentendimento tão mas tão ingênuo. Eu sei, mas acho que ele tem trocado o dia pela noite. O menino se torna noutra pessoa quando troca o dia pela noite. Irritado? Sentimental, eu disse, tu sorriu e sussurrou, fofo, não compreendi, apesar de ter querido te elogiar. Ser sincero. O que tu veio fazer aqui? eu disse sem ser grosso. Tu foi bem incisiva sobre nunca mais me ver pelo que lembro e, ai, eu me lembrava com tanta clareza. Mariane riu. mas… mas. Nós ainda precisamos fazer uma última coisa juntos, você sabe, me disse. Segurou com os dedos longos a câmera fotográfica esticando os braços em minha direção, debaixo (ou por cima?) do espírito da pele translúcida que dias atrás teve inteiro protagonismo em apagar ou os suspiros ou a totalidade da nossa história de amantes na mesma câmera. Em dois toques, disse-me ela... uma expressão que significa facilidade e também realidade, neste caso. Quem sabe seja dessa maneira que todas as mágoas humanas são concretizadas. Por dois toques; metafóricos ou não. Não obstante, em noventa e nove por cento dos casos o ou não prevalece; uma causalidade que obrigou-me a erotizar meus próprios imersionismos insensuais. No mesmo instante em que o primeiro grito de luz diluiu a sala ela estava sem as calças e sem a camiseta vermelha que agora abraçava o assoalho, vestindo um corpo invisível apurado por agonia.

Sentada na mesma cadeira que eu sentei quando meu irmão me viu nesta manhã, cruzou as à mesma maneira que cruzei, com os joelhos convergentes, e se fosse em outros tempos tempos de lótus muito mais penetrantes e sanguíneas eu teria sim rastejado com pressa ‘té teus lábios no entanto: não mais. Só o que me propus a fazer foi ser teu fotógrafo assexual cujo singular impossível desejo é o desejo do desaparecimento circunstancial ou o desejo misterioso de ser a cópia falsificada que me mandaria direto para o quarto do lado, dormindo atormentado, mas atormentado por outras tormentas, tormentas cuja esperança ainda é uma possibilidade na solução; sendo meu irmão mais novo vivendo o dia no piano & nos livros e as noites nos filmes & nas partituras sem o peso desse crime. Mariane abriu o livro em alguma pagina que para mim pareceu por acaso, Ágape Ágape. Não atire em mim, eu sou só a minha musa, tocando a ponta do tapete para frente e para trás com os pés. Ouvi dizer que aquelas pílulas não te fazem tão bem. Enchi um copo de água pensando no que devia passar pela sua cabeça e sim você parecia deveras concentrada lendo este romance enorme que jamais escreverei. Vinte segundos para o próximo e penúltimo clarão atravessar nossos corpos, sento-me do teu lado e tua mão está para a minha surpresa quente e só espero que eu permaneça na sombra, longe de estar envolvido pela luz oriunda de qualquer onda ou partícula imaginável pois sei que envolto em luz este texto seria uma peça de escárnio azeda. Eu, realmente, acho que, deveria, focar, teus olhos, mas pernas, você insiste, então levante elas um pouco não menos perfeito e tuas pernas serão uma de tuas próximas aquarelas e só espero que o quadro te agrade simples simples assim ó não é óbvio que seria até você subitamente se levantar e no aperto da minha íris que ardeu num borrão estranhíssimo conforme teu corpo é segurado com todos os raios de beleza que é digno você pegou a câmera e pôs sobre a estante; a configurou para ter sua vida própria se sentou do meu lado e disse para mim não sorrir e eu sonhei em cogitar uma ideia inaugural do pensamento de que se eu te amar só mais uma vez para essa fotografia somente será ela a tua tão aguardada obra-prima? me recuso a não recusar as perpétuas possibilidades. Ela sorriu na metade do compasso do último clarão de luz. Deixe-me esquecer do hoje até amanhã. Tudo o que eu mais queria antes de voltar para a cidade era te encontrar, e contar as coisas, me lembrar do teu cheiro e do teu gosto de perfume de cereja misturado com urânio, que me traria de volta tudo e tudo e todos os encontros de janeiro, todo o amor de março; e com os desejo realizados nada me parece mais tão docemente prazeroso como parecia, agora que o desejo está consumido só tenho os mesmos medos; toscos: sim. Não obstante, presentes de um jeito que não posso negar. Agora a luz dos teus olhos me assustam e o eco da tua boca me torna um bicho estrangeiro à minha língua, que antes morava por horas em ti como um ente de clausura hedônica. Me afogarei amanhã e você não faz ideia. Não faz ideia porque não me julga ser capaz, não julga que eu possua a estrutura necessária para o suicídio. E talvez esteja certíssima. É o que se dará até eu talvez mudar de ideia, porque não descarto a possibilidade de que finalmente abandonar minha cumplicidade com os algozes deste mundo é só mais uma daquelas coisas sazonais abarrotadas de fel que me dão na telha vez ou outra.

— Todas as cidades são inóspitas, meu amor.

Acordei quando estava de noite, e dormir fez eu me sentir bem. Deitado no sofá, senti um peso sobre meu rosto; pensei em tirá-lo dos meus olhos, porém ouvi os passos de Mariane rangendo no assoalho; ela guarda o livro com com feição inquieta, extraordinária, acende a luz, meus olhos voltam à vida, seu corpo ilumina-se laranja e lindo, em chamas que me suam agonia; ela acaricia as pernas com as pontas das unhas e se deita sobre mim e me beija e, no instante em que toca meu sexo eu tiro sua roupa na mesma pressa fria que sua mão me aperta enquanto nossas pernas se entrelaçam, e nossas epidermes se amam com devoção compulsiva. Com a língua na tua boca sonho em pensar que nossa harmonia só exista para as nossas peles, alma jamais – e este sonho talvez me entristeça, alguma outra hora, quando eu ter a solidão de volta; agora meus segundos me importam e me regeneram debaixo do regozijo do teu calor.

— Depois você quer ir dormir comigo em outro lugar?

Não.

IMEDIATISMO

no campo de margaridas eu te vi.

luz mudava a matiz de tecido d’água,

e nossos gritos eram interrompidos.

havia aflição nos teus olhos; e você desapareceu na madrugada.

deitei-me na grama — apagado, pelas flores-edifícios,

sentindo o medo espontâneo fluindo em meus sonhos, sentindo o medo na possibilidade de andar, contra a escuridão, e enxergar, mais uma vez, tua fronte cristalizada;

de viajar sob a lua, acompanhando a luz,

que dela brilha,

não percebendo que em toda minha vida tudo o que fiz foi andar pelo claro.

...e meu deus! eu nem saberia o que é verdadeiramente a luz da lua se, naquela noite, essa luz não resplandecesse — branca — na pele dos teus seios.

dia 26 de agosto.

DA NOITE QUE CLAREIA A NOITE

Adolescentes vagam ocultos, sedentos. Teu corpo debruçava-se sobre o parapeito limitado pela pele inquieta, na medida em que minha sombra esperava e acompanhava meus passos, eu pensava num lugar de mais profundo entendimento; e pensei que se tal lugar, que chama a si mesmo de lugar, exista, espero que ele tenha a sorte e decência de também ter o mesmo parapeito debaixo da estrela postiça e por cima de uma neblina que transborde a mesma intimidade com tua pele (exceto que você pretendia se jogar). A fumaça do cigarro, molhado de chuva até os ossos, polui agora a neblina... e constrange verdadeiros cafajestes; bálsamo silencioso, parte das ironias d’uma cidade levantada a partir da mistura de água e cimento com um sarcasmo abstrato. Enquanto as coisas parecem tão grandes, daí tudo se torna tão pouco; estou vivo e estou morto porque isso dura o máximo que isso pode. Eis a morteconsciência desesperada de quem abre os braços tentando se equilibrar com um pé atrás do outro, não precisamente paralelos, e os fones de ouvido brancos emaranhados com os cabelos escuros reverberam músicas incompreensíveis, que antecedem um pulo bêbado; valioso, sofrendo as consequências da náusea pelo excesso de uma aspirina imaginária… é tão claro para mim e não será eu quem lhe dirá que todas as desolações, que hão de deixar o anjo que nos acompanha invisível tristíssimo, bebem nas margens de um destino cheio de pecados e não obstante às vezes – ainda que o reservatório de fé em nossos semelhantes esteja absolutamente vazio e agredido por inseguranças severas –, tão cheio de amor. Trata-se de um destino que equipa com fragmentos de asas azedas só os anjos, por ter a convicção mais pura que sua margem de que eles não as usarão; não, não usarão as asas nunca, e serão para sempre espectadores cheios de desgraça nos olhos de diamantes, enquanto tu e eu engolimos luas de ferro. Um amor supremo. De pessoas tímidas que brilham na cegueira cor de silêncio.

Mas regresso ao mundo que me rodeia, pensando que tenho cem reais para viver até o dia cinco. Talvez uns cinco reais por dias para chantagear minha sobrevivência.

No canto radioso do parapeito ao lado de uma garrafa de conhaque e um romance, os pés dela sustentavam sua forma debruçada abatida, sob o sobretudo bonito & entre os sapatos escuros; era uma incógnita saber se ela ia ou não ia de fato pular, e por este medo específico me aproximei e toquei suas mãos. Era tarde, e os carros da polícia passavam de minuto em minuto, intensificando todo o perigo, até para quem se afoga. Te acompanho até tua casa, eu digo.

A chuva não cessava enquanto corríamos para as calçadas com coberturas e fugíamos do frio do molhado. A tua exaustão me encanta muito.

— O que você vai fazer depois disso?

— Disso?

— É. Irei chegar em casa eventualmente.

— Eu não sei. Ir para a minha... Tenho que dizer: você se veste muito bem pra alguém que perambula por aí pela noite.

— Mas eu não perambulo. Eu saí de casa com um propósito bem definido.

— Tenho inveja... tenho inveja.

Ela riu.

— Duvido muito; porém me conte o que é importante: quem é você?

— Como assim…?

— Me conta sobre você. Etcéteras.

— Eu não faço nada. Não vejo ninguém. Exceto em momentos avulsos, como este. Na verdade, vivo como um escondido.

Você vive um sonho, ora fora de um sonho, sim, muito talvez.

— Que chuva estranha. Parece que estou num filme do Louis Malle.

Eu não sei se discordo. Mas acho que sim.

E a pele dela, fosforescente, obscureceu todo o ambiente, preto, e acompanhando seus passos, meu cérebro está hipnotizado, numa poesia que jamais saberei ler, e nada importa; pois a dois a dança me fará sonhar.

E os quadros da dança que borboleteavam em minha imaginação foram interrompidos quando um homem negro, próximo dos quarenta anos nos parou, vestindo um terno velho mas bem cuidado, de rosto jovem. Embora não parecesse ser um sem-teto, disse com a voz rouca de cigarros que era, e não estava bêbado, porém carregava na mão esquerda uma garrafa vazia de alguma bebida. O homem disse ser pianista e que ia tocar num bar às duas horas da madrugada e nos convidou para assistir. Nós negamos

Eu disse que estava a levando em casa. Compreendeu gentilmente e então caiu em minhas mãos um texto, que dizia, em letra de fôrma e todo em maiúscula,

Objetos na mesa de um recinto escuro, numa noite fria sem luar… a luz de velas, agora acesas, a formar sombras fantasmagóricas nas paredes não tão sórdidas de madeira; as cortinas de leve, a balançar mesmo reflexo tangente, nos espelhos insanos de cada parede. Parte de um todo um tanto quanto vulgar… e às vezes reflete até as auras espectrais, de janelas vítreas em metafísicas equações vitrais; sombrais arvoredos nos campos e nas clareiras de florestas densas e nada mais.

Ela entregou para o homem, como uma “retribuição” ao texto a garrafa de conhaque até que cheia que carregava; e eu duas moedas de um real.

E nada mais.

Que vazia, que sem sentido. A chuva desta cidade é muito mais uma paranoia psicológica que uma realidade, ela molha mas não até o fim; e me deixa aqui, estático e sem palavras. Por isso estes diálogos ruins. Quem me dera, sonhei – queria, falar coisas bonitas e profundas, sob o véu deste horizonte todo deformado. Te surpreenderei alguma hora.

O que é amor?

É verdade que essas memórias e possibilidades doem muito, e não há jeito d'eu me sentir diferente. Um cachorro late e um bebê chora. O que é amor? Estávamos nos dois na calçada interminável da rua dela, andando, lentos, serenos, debaixo dos serenos. A chuva havia cessado, e nossas roupas secavam frias. Não havia nada a ser dito e sou péssimo em falar. Fiquei calado, mesmo estando muito inquieto, com as mãos no bolso do casaco, e a cada dez passos arrumando meu cabelo com os dedos da mão direita. Minha fronte está gelada. Queria beijar seus lábios quando chegasse em sua casa, dizer a ela um bonito cinza adeus e desaparecer da sua vida para a eternidade. Mas tudo parecia caminhar em direções muito opostas, sem beijos, sem palavras e, da minha parte, sem desaparecimentos. Querem nos transformar em fantasmas. Já sabem que nós não temos alma e é necessário homogeneidade entre nosso mundo e seus fantasmas e os nossos fantasmas, você sabia disso com tão mais clara lucidez que eu sei – e jamais hei de saber.

Onde estará o calor, de tua mão, que como um vapor decepado minha pele ampara. Onde jaz a mente culpada de meu pai cansado. Ela me abraçou. Senti o calor do seu xale verde-escuro. Perguntei sobre seu nome. Rose, me respondeu, como se revelasse abruptamente um verdadeiro mistério, levantando o nariz avermelhado na direção do meu pescoço. Por que a graça gracioso?

Nada, eu disse, é um nome muito bonito. Me enrolei com as palavras, envergonhado, porque eu falava um pouco mal. Se distanciou uma pequena distância do meu corpo, distância suficiente para me fazer sentir frio mais uma vez. Em silêncio vi que Rose era ainda mais linda naquela proximidade acolhedora e clara em razão das luzes brancas dos postes cerrando os contornos de nossas imagens. E qual teu nome, afinal? Á, não queira saber. Meu nome é estranho. Falei tentando equilibrar minha timidez com alguma graça, ou até “relevo” da paixão que fervia. Me chame por qualquer nome que você quiser me chamar. Rose sorriu, eu sorri. Nas cortinas amarelas de uma casa, vimos as sombras de um homem, que tocava a valsa número dois de dmitri shostakovich, no violoncelo… e no apogeu da última arcada, que grita amarrada, eu quero o seu, Rose me disse, e minha cabeça se foi para longe da terra enquanto a luminosidade da rua converteu-se em um escuro insípido. Corremos.

Tão sem classe e tão liberto. E tento me lembrar: meninos não choram. Ela me convidou para entrar quando estávamos em frente ao prédio do seu apartamento sentados nos paralelepípedos e eu tinha fome, ela cansaço; quis segurar sua mão e carregar a cruz dos dedos, mas Rose permanecia com os braços irresistivelmente cruzados. No seu quarto me vi em um templo muito sem fim e mínimo. Não sabia se ela morava com os pais ou com quem, só o que imaginei era que havia de ser com alguém, embora não tenha querido incomodá-la com perguntas nem, na verdade, incomodar a mim mesmo com respostas. Pensei comigo na hipótese dela ter visto qualquer coisinha de diferente em mim, e se viu, o quê? até aquele momento eu poderia ser muito bem um assassino ou um psicopata ou qualquer coisa nessa cidade chacinada até os ossos pela navalha da classe média. Ou: se eu fosse um criminoso, eu poderia muito bem tê-la deixado se afogar. Não obstante, não; não… Não é a mesma coisa; um assassino é para mim neste instante a representação humana de uma sociedade enfeitiçada pelo espetáculo (as memórias dos circos ainda me afetam de quando em quando), e a essa altura das coisas todos sabem que o teatro do assassinato é muito mais atraente que seus propósitos e fins. A morte é só o elemento de choque e não há choque quando jovens pulam de pontes. É preciso mais.

Rose se despiu, nós nos abraçamos, eu encharcado, sem pressa para tirar a minha roupa. Incorporando em meu espírito mundano toda a sua nudez que cheirava a gardênia e outros mundos, inteiramente estranhos para mim. Tudo o que eu ansiava, de corpo e alma estava ali: o toque, calor: o beijo, a saliva poderosa da intimidade. Essa tristeza é infinita, me disse. O quarto de Rose representava a antítese do meu, pois o meu era poluído com excesso e… o primeiro beijo, infantil e severo, acinzentado, existiu para ser cortado pela sensualidade dos próximos, que de amontoados de gotículas estremecidas, gradualmente fizeram-se beijos excitados até a taça de água na mesa derrubada. Pensei na existência mística de minha mãe. Na mãe estranha que tive e nunca conheci decentemente. A minha mãe que está ou não está aí em algum canto da terra fugindo de tudo o que se deve fugir pois… o fogo e a nitroglicerina são também gritos de condutas angustiadas. Me pergunto se foi por essa razão que meu irmão voltou para cá; mas duvido que ele seria “capaz”, apesar de que justificaria seu cheiro de concreto; e olhar de concreto; e palavras obscurecidas pelo mesmo antiquíssimo pó. No fim e bem no fundo só tenho a certeza definitiva de que ele não voltou para me ver. O ruído da chuva me acalma, como uma espécie de refúgio e desgraça. Antes de Rose cair no sono, toda lindíssima de bruços, me disse que eu não poderia dormir ali, que deveria ir embora. Sofro, imerso nesta negra noite. Ante o conflito minhas pernas respiram a cor do silêncio meu nariz transpira o cheiro daquilo que me lembro ter ouvido, cansado, essa tristeza é infinita tu vive numa cidade inóspita — enrolado por peles inóspitas, meu amor — pensei tu haveria de me confessar cedo ou tarde esses pensamentos não têm significados ou — quem sabe — o que me significa jamais me dirá, que quem pensa já é um condenado, e estamos todos condenados a viver, em transes de confluentes escuridões. Meu relógio marcava uma e quarenta quando bati bem devagar a porta pesada do seu quarto; testemunhei a sombra desvanecendo seu corpo adormecido. E tudo absorvi no retorno à solidão.