A ferrugem do desamor

“Não te larga de mim, amor

entre cegos e tiranos modernos,

entre rosas e espinhos

de mãos dadas tenho força pra caminhar”.

Sérgio Vaz

João acordou com os primeiros barulhos do dia. Olhou para Elza que dormia encolhida com as pernas finas em forma de s. Os braços magros no formato de foice apoiavam o queixo e um lado do rosto. O lado que estava visível João beijou com uma boca seca de lábios rachados e sedentos. Quando pensou em falar alguma coisa para acordar a mulher, o barulho pesado do trânsito lhe tirou a fala.

Elza abriu repentinamente os olhos remelentos e assustados e achou que todo aquele estrondo agressivo fosse culpa dele. Bom, João era culpado de muitas coisas e admitia isso. Mas, não se sentia culpado por sua mulher passar fome quando ele também passava.

O sol batia forte no teto de zinco quando João saiu a procurar um café para dois.

Algumas fomes e dores depois, João e Elza continuavam juntos apesar das ameaças que ela vinha sofrendo do ex-marido. Ela ouviu de João, que ouviu de todo mundo, que o homem os procurava para atropelá-los. Assim ele tinha dito na feira, no bar e na zona. E assim ele tentou fazer. Foi numa tarde calorenta em que as circunstâncias se desenrolaram da seguinte forma:

João e Maria vinham da cata de recicláveis quando adentraram numa ruela esburacada que terminava numa baixada. Antes da baixada tinha um muro antigo e sujo de um campinho de futebol. Os dois vinham arrastando sacolas quando ouviram o barulho tenebroso se avizinhando. Largaram as sacolas e tentaram correr. Tropeçaram. Rezaram os joelhos no chão. Se levantaram aos tropeções. Olharam para o passado em forma de caminhão e para o futuro em forma de buraco. Então pararam e instintivamente colaram no muro. E esperaram.

O caminhão deslizava como uma casca de ferro gigante que avançava em direção aos dois abraçados e firmes. O encontro que se avizinhava era desproporcional.

A máquina que rugia e soltava fumaça estava há vinte metros do casal que parecia dois gravetos secos balançando ao vento e ao sol da tarde. A mulher enlaçava o homem pela cintura e o homem tinha as mãos postas sobre os seus ombros. Estavam horrendos e fatais como duas pinturas de Goya. E fatalmente terminariam sangrando mais que aquelas figuras. Eram uma mulher e um homem que uma vez eram, diriam as pessoas. Se nada dissessem, daria no mesmo.

Elza e João se abraçaram e se encostaram ao muro da rua estreita. Não tiveram tempo de ver, no último segundo, o caminhão se desviando cinquenta centímetros. Estavam de olhos úmidos e fechados e as mãos unidas. Apenas sentiram nos trapos dos corpos o vento da máquina que passava. Demorou alguns segundos antes de abrirem os olhos e avistarem o caminhão amarelo dançando ladeira abaixo.

Depois veio a perícia e o jornal local noticiou que o motorista estava alcoolizado. Foi o que se disse naquele dia. João e Maria nada disseram por que nada lhes foi perguntado. Ninguém os viu naquela rua, naquele dia, nem em qualquer outro dia. Evitavam toda e qualquer lembrança do desamor.

make
Enviado por make em 18/11/2020
Reeditado em 18/11/2020
Código do texto: T7114554
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