Aurora

No ano de 2008 eu comecei a trabalhar como acompanhante e cuidadora de uma senhora muito simpática, a Dona Aurora. Ela estava com noventa e um anos e com uma certa dificuldade de se locomover, mas era completamente lúcida. Uma mulher inteligente e de muita sabedoria.

Eu havia formado em enfermagem e consegui esse emprego que pagava muito bem. Eu trabalhava no turno da noite.

Logo simpatizamos uma com a outra. Ela tinha uma vivacidade invejável e gostava de conversar. Eu a escutava com atenção e interesse. E ela percebendo isso ficava entusiasmada.

Cerca de três anos depois ela estava ficando mais debilitada, cada vez mais fraca.

Uma noite ela me disse:

-Por que será que vivemos tanto? Ainda mais no meu caso que nem vivi, apenas passei pela vida.

-Como passou pela vida? A senhora teve uma vida profissional brilhante e de sucesso. Chegou a ser diretora de colégio. Quantas mulheres da sua época tiveram esse privilégio? A maioria não estudou e nem trabalhou fora de casa.

-Minha vida profissional foi um sucesso mas minha vida pessoal foi um fracasso. No meu tempo de juventude o mundo era muito machista e preconceituoso. As pessoas ditas diferentes precisavam se anular pra poder viver com um mínimo de dignidade.

-Ainda hoje o mundo é machista e preconceituoso. As pessoas só disfarçam melhor que antigamente. Mas no fundo a maioria ainda não aceita a quem chamam diferente.

-Quero lhe contar minha história. E só faço isso porque confio em você. E também porque estou morrendo. Não sei até que dia vou estar aqui.

-Que bobagem. A senhora vai viver muito ainda. Está cheia de saúde. Apenas as limitações da idade lhe acometem.

-Uma pessoa de noventa e quatro anos não pode pensar no futuro. Posso viver até os cem anos. Mas posso morrer amanhã. É a ordem natural das coisas. Nem são muitos os que chegam até a minha idade.

-E pra que pensar nisso?

-Bem, quer ouvir a minha história?

-Sempre gosto de lhe ouvir.

-Quando eu me for, você pode contar a minha história.

-Vou fazer isso.

-Desde a minha infância eu me sentia diferente. Nunca gostei de brincar de boneca, de casinha, de coisas de meninas como as outras meninas faziam. Como eu não podia brincar com coisas de meninos, eu preferia ficar no meu canto. Sempre gostei de ler e de estudar. Eu não entendia muito bem isso, achava que era normal.

Quando eu já tinha sete anos, o meu irmão Afonso nasceu. Desde cedo eu percebia que ele também era diferente. Gostava de calçar os sapatos de nossa mãe e de vestir roupa de meninas. Meu pai sempre ralhava com ele e dizia pra ele se comportar como homem. Mas ele era diferente. A pessoa é como é, ninguém pode mudar isso. Mas naquela época não se entendia que ele não era assim porque queria e nada poderia fazê-lo virar “homem”.

Quando eu tinha doze anos conheci uma menina e nos tornamos amigas inseparáveis. Eu amava ficar com ela, conversar com ela. Ela me entendia, a gente era muito parecida no nosso jeito de ser.

Quando eu tinha dezessete anos e já estava quase me formando professora, o filho de um amigo da família começou a me fazer a corte ou me paquerar como se diz hoje.

Meus pais faziam gosto nesse namoro. Começamos a namorar. Naquela época o namoro e noivado eram respeitosos. Namorávamos de longe, cada um sentado em uma poltrona. Poucas vezes nos aproximamos e então ele pregava minha mão ou me abraçava. Mas beijar nunca, eu não permitia.

Minha amiga, Lucília, não gostou quando comecei a namorar. Ela falava mal dele e fazia tudo para que eu terminasse o namoro. Quando fiquei noiva ela chorou um rio de lágrimas.

Por fim, quando eu tinha dezenove anos nos casamos. Lucília chorou durante toda a cerimônia e nem participou da festa.

Fizemos uma pequena viagem de lua de mel. A noite de núpcias foi um desastre. Embora eu como professora formada tivesse noção do que um homem e uma mulher fazem em uma noite de núpcias, eu não poderia imaginar que aquilo pra mim seria uma tortura. Eu não suportava o toque dele em mim. Sentia repugnância e me sentia mal e suja com ele me tocando. E assim foi durante toda aquela viagem.

Quando voltamos eu disse a meu pai que não iria ficar casada, que queria me separar.

Meu pai não entendeu e nem aceitou. E eu disse claramente que não gostava de um homem me tocando, que não aceitaria jamais aquilo.

Depois de muita polêmica até o meu marido entendeu que eu jamais iria aceitar ficar casada com ele e nos separamos.

Houve muito falatório na cidade e muita especulação sobre o motivo de uma separação tão precoce. Meus pais disseram que eu envergonhei a família e, desconfiados da minha amiga Lucília, me proibiram de encontrar e falar com ela. Eles me proibiram também de sair de casa, exceto para trabalhar. Mas a gente burlava a vigilância e se encontrava escondido deles. Ela me abraçava e me tocava eu sentia uma deliciosa sensação, completamente diferente do que senti com meu marido. Mas eu sabia que jamais teria coragem de me entregar a esse sentimento. Eu tinha uma família conservadora, tinha um emprego em colégio. Naquela época isso seria um escândalo. Provavelmente eu perderia o emprego. Daria um desgosto tão grande aos meus pais que nem cogitava essa hipótese.

Um dia Lucília beijou minha boca e eu percebi que a amava loucamente. Mas não tinha coragem de assumir esse amor. Ela me chamava para irmos embora da cidade e começar uma vida nova como anônimas na capital. Eu nunca tive coragem. Ela por fim se cansou e foi embora sozinha. E eu fiquei triste e amarga, vivendo minha vidinha solitária e medíocre.

Meu irmão estava cada vez mais se mostrando efeminado, como eles diziam na época. Meu pai ficava muito contrariado e acusava minha mãe pela situação que tinham em casa.

Quando meu irmão teve idade o suficiente e conseguiu se sustentar sozinho, foi pra capital levar sua vida. E eu pensei que eu também poderia ter feito isso e ter sido feliz com Lucília. Mas eu preferi me anular e viver uma vida solitária.

Eu só saía para trabalhar. No mais ficava em casa e quando meus pais precisaram cuidei deles. Quando faleceram fiquei completamente sozinha. Meu irmão não voltou mais para a nossa cidade e nem vinha aqui. Era muito reservado e nem sei se ele encontrou um amor em sua vida.

Quando me aposentei fiquei ainda mais solitária. Uma vida completamente vazia e sem sentido. Lembrava de Lucília e pensava se ela estava levando uma vida feliz. Nunca mais tive notícias dela. Eu a amei por toda a vida e ainda hoje quando me lembro dela, dos seus abraços, do seu toque, do seu beijo, uma saudade invade a minha alma e meu coração. Um certo arrependimento de não ter vivido aquele amor.

Mas o que adianta?

O tempo não volta. Eu perdi o trem da história. Ele foi embora e eu fiquei parada na estação vendo a vida passar.

Hoje estou aqui vivendo de lembranças. E são tão poucas as lembranças que não daria nem um capítulo de um livro.

Não é triste uma vida tão longa e tão vazia?

Dizem que Deus não aceita e nem perdoa pessoas como eu, como meu irmão. Mas se Ele não aceita, por que deixa que pessoas como nós venham ao mundo? Nós não nos tornamos assim, nós nascemos assim. Nós somos seres humanos como qualquer outro. Nós somos humanos, temos sentimentos, a vida e o desejo pulsa em nós como em qualquer um. Não somos minoria, somos gente e não cabe a ninguém julgar e sim respeitar.

Só quem viveu e passou o que meu irmão e eu vivemos e passamos sabe o que é ser “diferente” numa sociedade arcaica e conservadora como aquela do tempo em que vivemos nossa juventude.

Hoje pode haver preconceito, mas as pessoas vivem suas vidas e são felizes, namoram, casam, constituem família, criam filhos e a sociedade não é nem sombra do que foi naquele tempo. E eu acho tão lindo e comemoro muito essa liberdade que as pessoas têm de ser feliz.

Nesse momento ela enxugou uma lágrima e sorriu pra mim.

-Espero que tenha me entendido e que não tenha ficado chocada com a minha história.

Eu a abracei e disse que mais que nunca eu a admirava.

Aquela mulher sensível, inteligente e sábia me mostrou uma outra maneira de ver as coisas, de ver o mundo e suas diferenças. Ela me mostrou o valor de viver sem preconceito e que o acolhimento é o que se espera de cada ser humano.

Dois anos depois ela faleceu serenamente.

O tempo que convivi com ela foi um constante aprendizado e eu me tornei uma pessoa muito melhor. Tenho certeza que ela está em paz onde quer que esteja.

Nádia Gonçalves
Enviado por Nádia Gonçalves em 24/05/2022
Reeditado em 24/05/2022
Código do texto: T7522961
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