Vale da Garganta Intransponível

Levino é um peixe pequeno e mirrado que vive nas profundezas do lago de águas barrentas que há na parte baixa das escarpas de um conjunto montanhoso. A água de chuva que desliza pelas vertentes das morrarias, invariavelmente, agrupa-se naquele lago, dali esparramando-se pelo fundo de vale, abastecendo outros reservatórios nos arredores; porém, nenhum compara-se ao lago onde Levino exerce liderança absoluta. Nadando lado a lado com ele estão os peixes maiores que são as traíras, os mandins, as carpas, os surubins, os cascudos e os lambaris; estes servindo de alimento para todos os peixes maiores, fato que, embora faça parte da hierarquia alimentar desse ambiente, não agrada ao líder.

Para chegar ao posto em que se encontra, Levino teve que colecionar muitas experiências ao longo de sua vida, algumas delas boas, outras ruins; criando-se assim, laços inseparáveis de amizade com uns e o ranço da inimizade com outros, o que se contabilizado, com a maioria. O mal estar entre os concorrentes deve-se ao fato de que nesse ambiente aquático é impossível dois deuses usar a mesma coroa: ou Levino se apossava da preciosa reluzente, ou outra espécie qualquer; porém o tempo e os aliados vestiram o franzino e marrento Levino, com o terno e a gravata. Para pisar, estenderam um felpudo e macio tapete vermelho; no centro do salão de festas, o trono e na ínfima cabeça do Senhorzinho, adornaram-na com uma preciosa e reluzente coroa.

Assim nesse apogeu abastado, criaram-se o reizinho e líder das profundezas das águas de cor avermelhadas. Todavia, o traçado do futuro foi desenhado logo cedo com as vivências de seus pais que em palavras por ser resumido assim: “Tormentas avassaladoras as quais os acomodados jamais querem atravessar. Esses são incapazes de desafiar o destino que lhes foi dado”. E sorridente finalizava: “Querer...todos querem, mas poucos são merecedores”. Assim Levino definia o heroísmo do ciclo vital dos pais.

Seus pais foram os mais espertos trambiqueiros e larápios de isca que os lagos do condado: “Vale da Garganta Intransponível” conhecera. Sem precisar de cursos preparatórios, a primeira lição que os filhos recebiam como legado era roubar iscas e não importava os anos de experiência do pescador com os anzóis e varas. De tempo em tempos, as vítimas reuniam-se em grupos para criar sistemas de captura, tanto do patriarca, como do restante da família; no entanto, assim que notava algo novo imóvel nas profundezas das águas barrentas, o vivaz do patriarca mudava radicalmente suas estratégias de defesa e expondo os filhos aos perigos da avidez dos anzóis, após a terceira tentativa consecutiva, não havia iscas postas no anzol que lhes saciassem o apetite.

Por ironia de Poseidon, deus supremo das águas, embora seus pais viessem a definhar pela boca numa emboscada, Levino já havia colecionado experiências o suficiente para continuar respirando e ludibriando as tentativas de seus algozes; para tanto, ainda na fase aguda de aprendizado quando caía no anzol de algum deles e puxado pela boca para fora d`água, contava com as condolências dos pescadores, acostumando-se ele com a perda momentânea da liberdade. Por sorte, seu porte físico mirrado não satisfazia a gula e a ganância dos pescadores, que deleitavam-se com peixes graúdos e sentindo-se desapontados ao ver a boca rasgada daquele indigente desnutrido fisgada em seus anzóis, lançava-o imediatamente de volta às águas.

- O que está fazendo no meu anzol seu magricelo descorado. Não preenche nem o buraco do dente canino. Suma daqui infeliz asqueroso, talvez outro anzol te queira, o que duvido muito.

- Que sufoco! Desta vez foi por pouco; novamente fui salvo pela minha fraqueza. Às vezes a fraqueza é a fortaleza e salvação dos reis. Com escamas ou sem, peixe morre pela boca, exceto quem é majestade.

E sempre que cenas como a citada aconteciam, ele ganhava mais uma vida, mais uma oportunidade para ser, o que hoje é: um veterano afanador de iscas, fato que muitos pescadores sabem e por mais que queiram captura-lo, além de ter as iscas surrupiadas descaradamente, passam vexame com as fracassadas emboscadas.

- Esse é o resultado da pesca esportiva, do lazer do pesca e solta que vocês criaram e por muito tempo fui alvo dela; agora o alvo são vocês e quem brinca de negacear com vocês sou eu. Os papéis da pesca e do pescador inverteram-se. Filho de família de surrupiadores, Levino é! Então senhores pescadores, mantenham o bom humor e sirvam-me uma nova iguaria fresquinha, porque de minhoca estou farto. Pelo que sou, mereço banquetes requintados.

E toda vez que deparava-se com uma armadilha, coisas tais como, malha fina de tarrafas e redes; lanças e arpões de pontas afiadas, ele recitava a frase de guerra de seu mentor: “Querer...todos querem, mas poucos são merecedores”. Irreverente à tentativa de captura, desdenhava gargalhando. Até isto Levino, batizado como Rei em Miniatura, herdara da família, porém, com uma diferença: conforme a necessidade momentânea e de época, realizava tais proezas com eficiência requintada e absurda prosperidade; atributos que conferiam-lhe o apreço e respeito dos aliados.

- O mirrado reizinho tem méritos e competência de sobra para ser o que é.

E sempre que comemoravam nova modalidade de trapaça, as palmas, os assovios e as honrarias ecoavam pelos ares: “Dá-lhe pequeno, grande Levino; neste lago sujo, só vós tens o dom, o mérito e a audácia de desafiar os anzóis e sair incólume da batalha que constantemente é travada às escuras nestas profundezas!”

Uma vez que lambaris alimentam a cadeia e portanto, comido e degustado pelos peixes maiores, um deles errou a bocada, acertando levino que naquela ocasião encontrava-se em a coroa; todavia, o veneno liberado pelas guelras do pequeno peixe foi tão nocivo ao seu predador que foi obrigado a cuspi-lo longe, indo parar nos meandros de águas que levam ao reservatório vizinho.

- Certas espécies para preservarem suas majestosas vidas, adquirem cada poder de defesa, inconcebivelmente tão malévolo, que é impossível considerá-las presas.

- Verdade, principalmente quando o desavisado predador ataca o que não é para ser atacado; fez isso só porque eu estava sem a coroa na cabeça, ou é comum em suas investidas? Queres tudo facilmente é? Em cada milhões de peixes, um Levino é escolhido para ser o rei das profundezas. Da próxima vez, arregale os olhos e saberás por quais caminhos andas; se assim fizeres, terás menos decepção e conseguirás uma boa isca para degustar!

Esse faz parte dos demais contos que enredam o conto originário que é: "Era uma vez... e A Aparição"

Leiam.

PA

Mutável Gambiarreiro
Enviado por Mutável Gambiarreiro em 23/03/2015
Reeditado em 10/04/2015
Código do texto: T5180585
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