Andrezza Iriri, Cap. 2

Juvenal descansou um pouco. Não poderia ficar o tempo todo pensando no que acontecera pela manhã, mas sem dúvida não esqueceria de tudo tão rapidamente. Lembrou-se, por exemplo, de que quando corria de volta para casa, ninguém se importara com seu aparente estado de aflição. Aliás, lembrou-se também de que, quando os bate-bolas resolveram implicar somente com ele, praticamente não viu mais ninguém na rua principal. Ou não quiseram dar importância ao que acontecia. Quando entraram então na travessa, pela qual ele nunca tinha andado, aí é que ele não se lembrava de ter visto uma pessoa sequer. Mas tudo tinha acontecido mesmo. A orelha ainda lhe doía e certamente estaria avermelhada. Era só ir conferir no espelho do banheiro. O que iria fazer quando tivesse que usar de novo o vaso sanitário, deixando dessa vez de lado o barulho da descarga e as águas nas paredes do vaso para se olhar logo no espelho.

O noticiário da metade do dia na TV contribuiu para acabar com o interesse pela ocorrência da manhã. Que poderia ter parecido um sonho. Não valeria a pena contar a ninguém. Não havia também ninguém a quem pudesse contar. Izamara tinha ido pra longe. E talvez pra sempre. E por isso a casa continuava com poeira por todos os lados. O chão do banheiro cheio de pentelhos. Agora só seus. Com Iza a faxineira viria toda semana. Coisa chata. Privando-me da minha liberdade. Pra quê tanta limpeza? E, no entanto, isso fazia uma falta danada agora. Mas ele temia que seus livros fossem roubados. Ou as garrafas de vinho. Ou os tubos de pasta de dente ou os vidros de desodorante. Ou os rolos de papel sanitário. Mas não havia tudo isso em casa no tempo da Izamara também? E a casa não ficava limpa do mesmo jeito?

O âncora agora falava de mais um roubo realizado por aqueles que usam colarinhos brancos. Eles vão pegando os nomes por aí. Âncora... Mas o repórter já havia falado também dos crimes protagonizados pelos que não usam colarinhos. A história nessa cidade se repete com uma potencialidade incrível. Escutamos e vemos as mesmas coisas todos os dias. E, no entanto, continuamos a nos deixar prender por esse tipo de notícia. Uma das características intoleráveis mais presentes em todos os cidadãos de bem. Era preciso tornar-se um cidadão do mal, para ficar invulnerável a todo tipo de ilicitudes, desmandos e falcatruas que nos deprimem porque acabam sendo perpetradas contras nós mesmos, os chamados cidadãos de bem. Mais um papo vulgar. Do tipo daqueles que não dão em nada. Que novidade havia nisso?

Juvenal já tinha decidido que iria sair. Só que agora de carro. E para um lugar bem afastado de onde morava. Vou ao subúrbio. Passear um pouco. Havia alguns produtos de limpeza que precisava adquirir para o dia em que decidisse fazer uma faxina completa. Do tipo daquelas que nem mesmo no tempo da Iza as faxineiras faziam. Ele sabia que era capaz disso. Lá no subúrbio os preços são melhores. Posso ir ao trabalho amanhã. Não tem tido mesmo muito coisa pra fazer. Essa é uma das vantagens de ser funcionário público. Pelo menos isso, senhor. Esse “senhor” vinha de sua mãe, ou de seu pai, há muito desaparecidos. Mas sempre lembrados. Como não tinha pensado neles hoje de manhã? A não ser, é claro, no que se referia ao caldo-de-cana.

Cada vez adquiria mais habilidade no preparo do macarrão. Ficava pronto agora em menos de vinte minutos, conforme o modo de preparar que ele mesmo havia desenvolvido. Tomate seco, devidamente besuntado de azeite, alho, cebola e passas eram os componentes do molho, colocados na mesma panela que servira para aquecer a água depois que o macarrão tinha amolecido. Depois do aquecimento do molho, o macarrão voltava para a panela e tudo era misturado. Sendo servido com queijo parmesão. Umas duas taças de vinho rascante barato serviam como acompanhamento. A televisão costumava ficar ligada durante o preparo da refeição. Juvenal às vezes afastava-se um pouco do fogão para ver as imagens quando as notícias eram aquelas que acabavam provocando algum tipo de revolta ou aborrecimento com a situação da cidade, do estado ou do país. E normalmente com tudo que dissesse respeito à vida do cidadão em relação a esses três níveis. Roubos e assaltos pela cidade; o tráfego sempre congestionado, pela preponderância do transporte rodoviário sobre todos os outros, que simplesmente não existiam; crises no atendimento hospitalar, que redundavam eventualmente em mortes de pacientes nas filas diante dos hospitais públicos; falta de professores ou vagas nas escolas públicas, com o roubo sistemático dos equipamentos de informática e de escritório das unidades próximas aos morros ou comunidades carentes; buracos pelas ruas da cidade, que não eram reparados devido aos inúmeros vazamentos não corrigidos pela empresa de águas e esgoto do estado ou pela falta de dinheiro para a aquisição de concreto asfáltico por parte do município; o desmatamento da Amazônia; os vereadores, deputados, senadores e até o Presidente da República querendo aumentar o próprio salário, etc. E muito mais notícias desse tipo que, apesar da natureza mórbida, serviam, como a taça de vinho barato, para o acompanhamento da refeição.

Mas Juvenal preferiu nesse dia a presença da voz quase sumida de Chet Baker. E seu trompete irrepreensivelmente afinado. Não sabendo bem porque o grande intérprete e músico levara-o a se lembrar de um dos bate-bolas. Talvez pela postura meio cambaleante que o cantor certamente assumiria após a ingestão de excessivas doses de drogas que devia consumir, segundo o que lera um dia num jornal. Mas a qualidade da música era o que interessava. Tornava o macarrão mais gostoso.

Desceu depois e achou o carro quietinho onde o havia deixado. A cerca de cinco metros da entrada do prédio. O boa-tarde quase efusivo com que cumprimentou o Sr. Corrêa serviria para compensar aquela impressão de aturdimento que o privara anteriormente de se dirigir ao porteiro, quando fugira correndo dos bate-bolas. Havia um acerto com o Sr. Corrêa para que aquela vaga fosse mantida sempre por ali.

No carro sintonizou uma FM qualquer. Não tinha CD-player e as fitas K7 que possuía estavam praticamente imprestáveis. É claro que não ouviria nenhum Chet Baker. Ou algum Monsueto: “Eu não sou água, pra me tratares assim...” De repente poderia ouvir, isso sim, um noticiário local. E com ele aquelas mesmas notícias que hoje deixara de escutar na hora do almoço. Lembrou-se do tempo em que começaram as transmissões em FM. Havia praticamente uma única estação. Que tocava música, “música, exclusivamente música”. Não saberia dizer se essa estação ainda era AM. Mas o fato é que as estações FM no início tocavam apenas música. Não havia nem comerciais.

Os anos passam e é inevitável que lembremos das coisas. Uma diferença básica entre nós e os jovens. Nós temos muito mais do que nos lembrar. E agora, parando no sinal na esquina do bar em frente à estação de trem, em que costumava tomar caldo-de-cana com seu pai, Juvenal pôde ter uma noção bem aproximada do que é para um filho poder sair com seu pai pelo meio da rua. A idéia de proteção é uma coisa intrínseca no garoto. Até pelo pai ser mais alto, ou mais forte. “Sr. Uchoa, qual o pastel que o garoto vai querer?” “Juvenal, queijo ou carne, meu filho?” Deve ter ocorrido assim um dos muitos diálogos dentro daquele bar, cujas portas pantográficas há anos eram mantidas fechadas. Estavam cobertas de ferrugem. Tinha-se a impressão de que o bar fechara após a morte de seu pai. O que ocorrera há quarenta anos. Era o que Juvenal pensava toda vez que passava por ali em direção a um ponto mais afastado no subúrbio.

Depois de fazer umas compras mais volumosas num mercado em que o pãozinho francês chegava a custar três vezes mais barato que na padaria de seu bairro, Juvenal decidiu passar na casa de Iara, irmã de Izamara. Ficava praticamente ao lado. A visita não seria tão inesperada, em função das conversas que ele vinha mantendo com Efigênio, marido de Iara, com relação à sua separação. Efigênio mostrara-se compreensivo e atencioso. Escutava-o pacientemente, dando chance a que todas as suas queixas, lamentações e até explicações pudessem vir à tona. Embora Juvenal soubesse que, por mais que falasse, nunca conseguia livrar-se inteiramente de tudo. E nem ouvir algo de mais positivo, ou que contivesse algum tipo de conselho, da boca do marido de Iara.

Efigênio não estaria em casa. Mas não tinha importância. Pouco depois que chegasse, Juvenal pediria a Iara que ligasse para o marido, para que Efigênio soubesse da visita pelo próprio Juvenal.

Iara Luzia Albuquerque Machado. Tão bela quanto a irmã. Alta, morena, esguia. Cabelos castanhos curtos, formas generosas. 47 anos. Apesar do período de abstinência, que completava agora mais de sessenta dias, Juvenal tinha a certeza de não haver possibilidade de se sentir atraído pela ex-cunhada. Não só pela lembrança do corpo da ex-mulher. O que, depois de mais de vinte anos de convivência, não era o que lhe prendia a Izamara. Mas também pela situação de desconforto de que não se livraria facilmente em função da extrema atenção e delicadeza com que era tratado por Efigênio. Especialmente agora, durante a crise da separação.

Juvenal teve que bater palmas no portão por não ter conseguido localizar a campainha. Não vinha ali há muito tempo. Iara demorou-se um pouco para surgir na pequena varanda numa blusa de malha amarela, cujo leve decote mostrava o início dos seios volumosos. Uma saia azul lisa, uma sandália preta de salto, os cabelos cacheados jeitosamente penteados como se estivesse pronta para sair.

-Oi, Juvenal! Que surpresa!, disse Iara, deixando a varanda para receber o ex-cunhado no portão.

-Desculpe-me a indelicadeza de não ter avisado. É que depois de umas comprinhas por aqui, decidi fazer essa visitinha.

-Nada disso, Juvenal. Você continua sendo de casa. Venha, vamos entrar. Já tem um bom tempo que você não vem por aqui. Tá tudo bem com você?

-Tudo. Tudo vai indo. As coisas aqui são bem mais baratas. Valeu a pena.

-Pelo menos isso, né Juvenal?, assentiu Iara, abrindo a porta da sala para que Juvenal entrasse.

Uma certa escuridão era provocada na sala pelas cortinas das duas janelas que estavam fechadas. Juvenal entrou e aguardou pela indicação de poder sentar-se. Iara abriu logo a janela da frente e afastou as cortinas, tornando o ambiente arejado e mais iluminado.

-Sente-se aqui, Juvenal. Mais pertinho da janela. É mais fresco. Vou trazer um café pra gente.

-Vim dar trabalho, não é isso?, disse Juvenal, sentando no sofá maior, próximo à janela da frente da casa. Havia um espaço por trás do sofá para que se pudesse abrir a janela.

Juvenal não vinha na casa da ex-cunhada há pelo menos cinco anos. Não lembrava dos móveis que pudesse ter visto no interior da sala. Mesmo que não tivessem sido trocados. Mas o que chamara a sua atenção era o quadro sobre a poltrona menor, junto à uma arca na parede do lado direito do sofá em que estava. Alguns poucos traços aparentemente feitos de forma descuidada davam a impressão de que dois meninos lutavam acirradamente pelo direito de ficarem com uma pipa, deixada provisoriamente de lado sobre um balcão de madeira.

-Como é que vai a vida de solteiro?, indagou Iara, regressando da cozinha com uma bandeja reluzente contendo duas xícaras de café.

-Na verdade ainda não desfrutei dessa condição. Sinto-me de alguma forma preso ainda à situação anterior.

-Não acha que tá perdendo tempo, cara? Olha que a sua ex-mulher pode estar aprontando por aí.

-É um direito que ela tem. Como teve o direito de sair fora. Eu é que não consegui ainda me estruturar, devo confessar.

-Realmente. Os homens parecem que perdem mais. Simplesmente porque somos nós quem garantimos toda a infra-estrutura doméstica.

-Não tenho como discordar. Tinha que haver um curso para casamento. Os homens deviam aprender a fazer tudo aquilo que as mulheres fazem.

-É isso mesmo. Porque nós já fazemos quase tudo o que vocês fazem. Vocês é que estão em desvantagem. Por isso é que a maioria dos homens resiste à separação, sentenciou Iara.

-No meu caso não se tratou de resistência. Sua irmã quis ir e eu não fiz qualquer objeção. Apenas sinto dificuldade em me adaptar a essa nova situação.

-O que não deixa de ser uma resistência. Seria melhor que ela estivesse com você, a casa em ordem, tudo no lugar. Ela te esperando para uma refeição leve no início da noite. Ou você sabendo que ela não estava em casa, mas que ia chegar daqui a pouco.

-Estou vendo que vim aqui na hora certa. Deveria ter vindo antes.

-Mas não é isso que vocês dois têm conversado, menino?

-Mais ou menos. Mas acho que você está sendo mais clara que seu marido. Efigênio gosta mais de me escutar. Ele permite que eu me exponha mais, que eu me declare. Essa tática faz com que eu fale mais coisas, apresente mais dúvidas também. Mas não necessariamente me traz mais respostas.

-Talvez ele esteja querendo aprender. Preocupado com a possibilidade de o mesmo acontecer com ele um dia, disse Iara sorrindo.

-Você também não é mole, héin, Iara?

-Ou você é também daqueles que acham que o casamento deve durar para sempre?

-Bacana. Tô admirado. Não sabia, perdoe-me a franqueza, que você era capaz dessa articulação toda.

-Você e minha irmã não vieram muitas vezes aqui em casa. Mas nas poucas oportunidades que tivemos de conversar, só se falou besteira.

-Aprendi depois de casado que o casamento um dia termina. Só que, no fundo, a gente espera que esse dia não chegue.

-Como a morte. A gente sabe que um dia ela vem. Mas não acredita, resumiu Iara. A propósito, você já pensou em saber onde Izamara está?

-Pensei, sim. Mas tenho lutado bastante contra esse desejo.

-É um bom início. Porque é possível que isso não tenha volta. Não é preciso conhecer minha irmã. Ocorre com a maioria dos casais. E quando a volta acontece, às vezes é deprimente. Pra não dizer deplorável. A propósito, completou Iara, não faço a menor idéia do rumo que Izamara tomou.

Iara conversava com Juvenal sentada na poltrona sob o quadro que atraíra a atenção de seu ex-cunhado. Juvenal, no espaçoso sofá afastado da janela principal, virara-se para o lado direito, de modo a ficar de frente para a irmã de sua ex-mulher. A saia azul lisa, em função das pernas cruzadas de Iara, subira o suficiente para descobrir o joelho moreno de bela aparência. Mas o que definitivamente lembrava-o de Izamara eram os seios que, arfantes em decorrência da movimentação provocada pelo diálogo, haviam conseguido mais espaço no decote da blusa de malha que os continha.

-Quer um pouco d’água, Juvenal?

-Se você for beber, eu aceito.

O movimento imediato de Iara para se levantar não permitiu que Juvenal usasse de discrição para deixar de ver o descruzar das pernas da mulher à sua frente. Pôde captar com nitidez a grossura das coxas morenas que se juntavam num filete branco denunciador da cor da calcinha de Iara.

Os dois filhos do casal chegariam provavelmente tarde da faculdade. Não havia sinal de empregada. Efigênio, o grande tocador de obras, é que poderia aparecer a qualquer momento. Embora talvez chegasse por volta de sete horas, para o jantar. Como eram aproximadamente cinco da tarde, Juvenal teria cerca de duas horas para aprender com a sua ex-cunhada algo mais sobre os segredos da relação conjugal ou sobre outros tipos de segredos que ela estivesse disposta a revelar. Mas ele estava decidido a não fazer o menor movimento nessa direção. Ainda que não fosse isso o que dele se esperava, a julgar pela leve intumescência aparecendo-lhe no meio das pernas.

-Bem, vou dar uma ligadinha pro Gênio. Saber a que horas mais ou menos ele vai chegar. Conforme for, você janta com a gente, disse Iara, trazendo na mesma bandeja reluzente, com a qual deixara antes na cozinha as duas xícaras de café, dois copos e uma jarra de água com gelo.

-Nada disso, Iara. Ia pedir mesmo que você ligasse pro Efigênio, o meu consultor sentimental. Mas daí a jantar com vocês... Não, muito obrigado. Não vim preparado para isso.

-Ué! É preciso estar preparado para comer?

-Não, não é isso. É que não vim pensando que isso pudesse acontecer. Não quero dar trabalho. A idéia era fazer apenas uma visitinha. Talvez até combinarmos alguma coisa assim numa outra ocasião, num fim-de-semana, por exemplo. Em que eu pudesse trazer um vinho, uma torta de sobremesa, um sorvete.

-Quanta formalidade, Juvenal. Deixa de ser bobo. Você parece que está em casa de estranhos, replicou Iara, iniciando a ligação para o marido.

Juvenal preferiu calar-se, enquanto ela completava a ligação.

-Oi, Gênio. Tudo bem? Sabe quem está por aqui?

A conversa não durou mais que cinco minutos, incluindo-se o breve diálogo entre Juvenal e o cunhado de sua ex-mulher. Efigênio insistiu para que Juvenal o aguardasse para o jantar. Depois concordou que seria melhor um almoço num fim-de-semana. Com mais tempo para conversar sobre a separação de Juvenal. Que logo devolveu o telefone a Iara, para que ela concluísse a conversação com o marido. E se preparou para voltar aos ambientes meio empoeirados do seu pequeno apartamento.

Aluizio Rezende
Enviado por Aluizio Rezende em 23/08/2015
Código do texto: T5356069
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