Livresco

- O que sei eu sobre esses assuntos, - ponderei - além daquilo que li nos livros?

- Por certo sabe mais do que eu, que não li tais livros - respondeu-me Belle, com um sorriso gracioso.

Estávamos na biblioteca de Kenwood House, em Hamstead, aguardando pelo Conde de Mansfield, William Murray, tio-avô de Belle. Eu viera de Londres trazer a documentação de um novo caso envolvendo tráfico de escravos para apreciação de Lorde Murray, e Belle, que o secretariava, fazia-me sala.

- Uma cultura livresca não substitui a experiência - prossegui. - Por mais vívida que seja a descrição do autor, só sabemos como é, na realidade, estando lá pessoalmente.

- Mas e quando não é mais possível estar lá? - Insistiu ela. - Por exemplo... na Grécia Antiga... ou no Império Romano?

- Oh... touché, milady. Parece-me que absorveu algo da arte do debate jurídico com seu nobre parente - reconheci, fazendo uma vênia de cabeça.

- Jamais! - Riu-se ela. - Não tenho tais pretensões! Já basta que meu tio permita-me tomar nota de suas cartas e compromissos... eu tenho outras tarefas a cumprir na casa, como sabe.

- Além de ser dama de companhia de Lady Elizabeth?

- Além de ser dama de companhia de minha prima. Sim, mas gostaria de ter estudado mais. E de ter tempo para isso. Mas, algumas coisas me são vedadas, como sabe.

Este era um assunto delicado e eu jamais o traria à baila, não fosse a intervenção da própria Belle.

- Enfim, mesmo sendo meu falecido pai um almirante da Marinha Real, a dura realidade é que minha mãe era uma escrava das Índias Ocidentais - continuou ela, expressão tristonha. - Ser mulata numa sociedade de brancos limita muito o que eu posso fazer e até onde posso querer chegar.

- Mas é certo que milady é membro da família Murray - animei-a - e como tal é tratada.

- Sim, não posso negar que sou tratada como igual pela minha família. Mas não vivemos numa ilha... apesar de estarmos na Inglaterra. A sociedade lá fora não é tão tolerante com pessoas de cor, mesmo que tenham títulos de nobreza.

- E o que milady gostaria de ter estudado, se pudesse?

Belle parou para pensar, por um minuto. E finalmente, exibiu seu costumeiro sorriso gracioso.

- Medicina! Eu gostaria de ser médica!

Abanei a cabeça negativamente.

- Mesmo que milady fosse branca, isso não seria possível. Não é permitido ao belo sexo cursar escolas de medicina.

- Algo extremamente injusto - insurgiu-se ela. - Como se fôssemos menos capazes do que os homens para curar!

- Julgo razoável o seu protesto, - admiti - mas esta é a lei.

Neste momento, Lorde William Murray adentrou a biblioteca. Ergui-me da poltrona e fiz uma reverência.

- Milorde!

- Sente-se, Jonathan - retrucou, instalando-se atrás de sua escrivaninha Luís XV. - Parece-me ter ouvido você falar algo sobre "lei".

- Decerto, milorde. Eu e sua encantadora sobrinha-neta falávamos sobre a proibição das mulheres cursarem escolas de medicina.

O Conde de Mansfield ergueu os sobrolhos.

- Uma coisa de cada vez, Belle. Por ora, acabemos com o tráfico de escravos. Em seguida, cuidaremos do acesso às escolas de medicina por mulheres.

Belle ergueu-se e fez uma vênia ao tio-avô.

- Tudo ao seu tempo, milorde.

- [25-06-2017]