Caminho de Santiago - Cap. 22/32 - De Frómista a Calzadilla de la Cueza

Acordei tarde no Albergue Municipal de Frómista. Olhei em volta e vi que somente eu ainda estava no dormitório. Como uma mola, dei um pulo da cama e fui direto pra cozinha, pois pagara na véspera pelo café e não queria perdê-lo.

Não adiantou – sobre a mesa havia apenas migalhas de pão, manteigueiras e copos de iogurte vazios – nada mais. Bela maneira de se começar o dia, pensei.

Meus olhos começaram a fazer uma completa varredura em busca de alguma coisa que me pudesse forrar o estômago. De repente, meu olhar se deteve numa caixinha de madeira que se encontrava sobre a pia: estava quase cheia de lindos e suculentos morangos.

Antes que pudesse ter outra experiência como aquela que vivi em Los Arcos, onde a administradora do albergue me repreendeu por ter bebido o restinho de um refrigerante que estava já aberto e esquecido sobre a pia, resolvi procurar por alguém e obter permissão para comê-los. Gato escaldado tem medo de água fria...

Parecia incrível, mas o albergue estava completamente vazio. Como era possível? O computador estava ligado na recepção, as luzes acesas nos banhos e nos corredores, mas não havia absolutamente ninguém ali.

Resolvi então "atacar" a caixa de morangos. Comi um, dois, três e quando vi já tinha acabado com todo o seu conteúdo. Subitamente, como que vindo do nada, entrou na cozinha a administradora do albergue.

Senti-me como uma criança surpreendida pela mãe fazendo algo errado. Expliquei-lhe a situação e ela disse o que eu já sabia: aquilo que se deixa sobre a pia pode ser consumido normalmente por qualquer pessoa. Esta é a regra adotada para se evitar o desperdício. O peregrino que não quer algum alimento pode deixá-lo ali para ser utilizado por outro irmão ou irmã de caminhada. Certamente ela não conhecia a administradora do albergue de Los Arcos, pensei.

Comecei a caminhar com disposição, passando por Población de Campos, Revenga de Campos, Villarmentero de Campos e Villalcázar de Sirga. Eu havia me transformado numa máquina de andar.

Como esse trecho é plano e todo feito margeando-se a

“Carretera P-980”, eu conseguia fazer quase 5 km por hora, o que é uma ótima marca.

Havia ninhos de cegonhas por toda parte – em cima dos postes, sobre os campanários das igrejas, nos cantos dos telhados das casas, etc. Ninguém as incomodava!!!! Era uma beleza ver quando pousavam para alimentar seus filhotes. A algazarra nos ninhos era total. Peguei minha câmera e comecei a gravar.

Após 19 km de caminhada, cruzei a estrada e entrei finalmente em Carrión de los Condes, outra pedra preciosa do Caminho com cerca de 2.000 habitantes. Já hospedado no Albergue Paroquial de Santa Maria, saí para conhecer a cidade.

Percebi que havia muito movimento na frente de uma igreja e fui até lá para verificar: era um casamento e a noiva estava chegando. Não perdi a oportunidade e como se fosse alguém já conhecido de todos, passei a tirar fotos daquele evento, inclusive da noiva. Logo após jantei e voltei para o albergue.

Após uma noite bem dormida iniciei minha caminhada sem ter decidido ainda por nenhum destino específico. Tinha que encarar a "meseta", sem água e sem bares – apenas uma grande vastidão com imensas áreas de plantio e muita poeira seca pelo caminho, que com o vento entrava pelos olhos, boca e nariz. Eu não sabia até onde iria a minha resistência.

Depois de ter caminhado por 16 quilômetros sem encontrar nada, absolutamente nada, a não ser os campos de trigo, alguns já completamente colhidos, meus olhos saltaram das órbitas: vi ao longe emergindo da terra, como um oásis no deserto, a pequenina Calzadilla de La Cueza, não mais que um povoado de 50 habitantes. Parecia deserta......

Como num filme de faroeste, algumas plantas mortas e ressequidas vinham rolando em minha direção empurradas pelo forte vento. Eu já havia terminado com toda a água do meu cantil. Minha saliva estava grossa e quando engolia em seco podia sentir nitidamente a poeira me arranhando a garganta. Meu pé esquerdo, que me incomodara um pouco na véspera, agora parecia estar mais inchado que o direito e começava a latejar dentro do tênis.

Era demais para mim!!! Vou parar aqui mesmo e está resolvido!!

Entrei decididamente no Albergue Municipal daquele lugarejo esquecido no tempo. Fiquei sentado na recepção por alguns minutos e não vi uma só alma. Comecei a dizer: “hello, hello” e ninguém aparecia. Levantei-me e resolvi explorar o prédio. Não havia ninguém ali. Já desiludido, vi uma sineta sobre o balcão logo na entrada e comecei a bater sobre ela, vigorosa e repetidamente – din, din, din, din, din!!!!!!!!

Não adiantou nada. Eu estava realmente sozinho e perdido naquele lugarejo que mais parecia uma cidade fantasma.

Resolvi largar minha mochila sobre o banco na recepção e saí em busca de alguma alma viva. Encontrei um outro albergue ali próximo que me pareceu também estar completamente vazio. Será que os habitantes daqui foram levados por alguma nave de outro planeta? Rindo desse meu pensamento, fui entrando pelo corredor e fiquei surpreso ao ver uma piscina lá nos fundos. Tirei minha câmera do bolso e comecei a fazer umas fotos. Não dava para acreditar - uma piscina aqui? Como é possível? Uma piscina num lugar desses em meio ao nada e com um clima tão frio?

Estava absorto em meus pensamentos quando ouvi alguém dizendo: “Buenas tardes señor – Quieres algo?”

Girei-me e verifiquei tratar-se de um homem de estatura mediana. Tinha aproximadamente uns 40 anos e decididamente não aparentava ser espanhol, pois sua pele era bem mais escura que a dos habitantes daquele país.

Falei que estava pretendendo ficar no albergue municipal, mas não havia encontrado ninguém por lá. Ele sorriu e tranquilizou-me: “isso é normal por aqui – o responsável vai voltar logo, é só esperar”.

Senti algo familiar nele, pois falava perfeitamente o espanhol, mas com um sotaque que não me era estranho.

Apresentei-me dizendo que era brasileiro e perguntei-lhe de onde era – Sou brasileiro da Bahia de São Salvador, disse ao mesmo tempo em que escancarou um grande sorriso formado por um milhão e meio de dentes alvos e perfeitos.

- E o que fazes aqui, perguntei.

– Trabalho neste albergue há quase 10 anos, respondeu.

Seu nome era Nenê. Uma figuraça!! Nos abraçamos demoradamente. Eu não entendia o que um soteropolitano estava fazendo naquele fim de mundo. Brinquei com ele dizendo – mas rapaz, vocês não gostam de trabalhar lá na Bahia e vêm pra cá dar duro na Espanha? Ele riu muito e disse: pois é, são coisas da vida....

Continuamos conversando quando de repente Nenê chamou um rapaz que passava naquele exato momento pela rua e me disse: “esse é o administrador do albergue municipal. Pode ir com ele, pois está indo pra lá”.

Já de banho tomado, barba feita e roupa limpa, fui ao que me parecia ser o único bar ali existente, onde fiquei por horas tomando minhas canecas de cerveja e comendo "jamón" enquanto pensava na magia de tudo aquilo que estava vivenciando. Onde neste mundo podemos encontrar algo similar? Tudo parece já tão explorado e previsível. Seria o Caminho de Santiago uma das últimas aventuras do homem sobre a face da Terra? A sensação de liberdade que experimentamos caminhando por quilômetros a fio cruzando e descobrindo repetidamente diferentes e inusitados rincões é algo indescritível.

A cada dia eu colhia inesperadamente uma nova joia por onde passava. Elas estavam sendo cuidadosamente guardadas nos porões da minha mente, nos quartos escuros e secretos da minha alma, onde nenhum ladrão jamais poderia roubá-las.

Voltei ao albergue caminhando por ruas estreitas e desertas sob um céu coalhado de estrelas lançadas ao espaço pela mão do criador.

Eu estava feliz. Adormeci profundamente e em paz....

Sergio Righy
Enviado por Sergio Righy em 31/08/2017
Reeditado em 29/09/2017
Código do texto: T6100392
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