No meio do nada, ninguém...

O crânio luzidio repousava ao sol da tarde. Moscas, mosquitos e pernilongos esvoaçavam ao redor dos dois homens que fumavam. Um fumava por hábito; o outro, para afugentar os pequenos insetos. Uma terceira pessoa estava debruçada sobre o capô da pick-up empoeirada.

-Quando for divulgado, será que vão botar a culpa nos ancestrais dos latifundiários - perguntou o professor

-Não se trata de pôr culpa. Trata-se de responsabilizar.

A resposta veio de uma moça vestida de roupas cáqui e um chapéu de abas largas. Trazia um rádio amador e uma prancheta nas mãos.

-Consegui contato com a base. Disseram-me para fotografar, acondicionar os restos mortais e partir imediatamente.

-Mas, não íamos acampar à noite?

Em resposta, a pesquisadora entregou um mapa todo rabiscado a um dos homens, retirou sua Nikon do bolso lateral da calça e começou a fotografar. O crepúsculo emprestava à paisagem um aspecto mítico. A sombra dos coqueirais se alongava na pradaria. Raios de sol adentravam por um buraco no crânio e saía espectral pela cavidade dos olhos. Quando a moça se preparava para a última série de fotos, os dois homens resolveram se levantar.

-Doutora, então quer dizer que as estradas poderão ser bloqueadas?

-Quer dizer que se não sairmos durante o dia, a noite pode nos devorar, professor.

O professor calçou um par de luvas e entregou outro par para o ajudante. Assim que este pegou o crânio percebeu que algo chacoalhava dentro dele. O professor se adiantou:

-Com cuidado amigo. Não queremos que ele morra de novo.

-Num intendi, sinhô!

Didaticamente ele explicou que o crânio pertenceu a um homem que havia sido assassinado. Explicava com calma, pois sabia que o ajudante conhecia esse fato como se fosse uma lenda. Sabia que ele tinha medo e fome, mas não tinha indignação quando, noutras vezes, havia pescado em um lago que continha peixes e também cadáveres.

-Amigo, se nós não tivéssemos resgatado, ele teria morrido duas vezes. A primeira, de verdade e a segunda de esquecimento.

-I uma veis só num basta, professô?

No céu, bandos de garças e papagaios passavam com sua costumeira algazarra. Numa moita de garavatá o silvo da cascavel colocou a todos de sobreaviso. A pesquisadora sentiu na pele um arrepio instintivo de receio e repulsa. O professor e o ajudante se olharam com parcimônia.

-É possível que os sem-terra estejam bloqueando as estradas?

-É mais provável que sejam os funcionários da fazenda, a mando do fazendeiro.

Após explicar que poderiam sofrer retaliações literalmente, a pesquisadora acondicionou o crânio em uma sacola de plástico e a colocou dentro de uma caixa de isopor. O professor e o ajudante recolheram o equipamento de mergulho. A seguir, entraram na caminhonete e partiram deixando uma nuvem de poeira para trás.

-Quanto devemos a você, amigo?

-Só a diária que combinamu, dotôra.

-E como vai explicar sua ausência na colônia?

O ajudante fumava olhando para fora. Deslizava seus olhos pela pastagem verde-oliva. Sabia que não tinha patrão, nem emprego, nem ninguém a quem prestar contas faz tempo. Tinha seu carro e com ele fazia frete. Enquanto isso, cutucava religiosamente o nariz, pressentindo que aquele crânio poderia muito bem ter sido de um seu parente desaparecido há muito. Uma tosse precedeu a pergunta:

-É pussívi qui ocêis vorte aqui di novu?

-Tudo é possível aos que estão vivos, meu caro.

A doutora acariciava a caixinha de isopor. O professor freou suavemente a caminhonete às margens do rio. Depois de entregarem as chaves e uma quantia em dinheiro ao ajudante; despediram e rumaram para a sombra de uma jaqueira. O velho barco ainda se encontrava lá. Poucos minutos depois já estavam no meio do rio. Ao longe puderam ver o rastro de poeira da velha pick-up. A fumaça vermelha serpenteava pelo cerrado em direção à aldeia indígena mais próxima.

make
Enviado por make em 02/09/2017
Reeditado em 23/06/2021
Código do texto: T6102649
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