Adalberto, o conjurador de coisas

A silhueta marcava a limitada visão do horizonte. Gradualmente sentia a aproximação dos seus passos junto ao meu, sua presença era indescritivelmente inquietante como um sol invadindo a fresta da janela no quarto escuro. Em meu coração um pulsar diferente ganhava formas e tonalidades, a vida crescente desprendendo-se de um corpo débil. Adalberto não possuía um aspecto dos mais viris, era um homem como todas as outras abstrações da humanidade, facilmente enganado na multidão de corpos embebecidos de tédio. Caminhava como um coxo destro, a barriga expandia-se livremente por sua camisa, os óculos, amarelos e redondos, pendiam discretamente abaixo da direção dos olhos. No entanto, o que lhe era mais característico, sempre foi onde os assombros não podiam ser capazes de enxergar diante da miopia geral dos exauridos senhores do tempo. Ele era a plenitude da divagação, leve como o vento que me rasgava neste precipício que habito, um espírito embriagado de lucidez e emergido nas profundas compreensões da incerteza, a sua serenidade o fazia forte e a capacidade de conter seu narcíseo era umas das suas mais compenetrantes virtudes.

O abismo era convidativo sob minhas costas, do último instante do fragmento desta rocha, repetidamente, observava-o em seu mesmo trajeto. Os rochedos insípidos se enganariam com aquele sorriso escuro, livre, na imensidão. Somente as rajadas frias que empurravam o meu corpo de encontro a queda, poderiam entender em totalidade, as verdades escondidas naquela ilusão. A dor em gestos incertos, no cumprimento trivial, a estranha sensação de carregar um imenso fardo em seu peito ou o medo de aparecer na existência e ser apenas um figurante medíocre, banalizando o inferno da insana agonia de perceber o calor emitido pelo corpo. São diversos os motivos para não compreender a sua inconveniente tentativa de transparecer alegria em todo novo alvorecer. Àquela neutralidade de espírito, eu era atraído, sentindo-me desafiado para desvendar os seus mistérios. Quando bem próximo de mim, um sorriso se esculpia no quadro de seu rosto. Era um sorriso escuro, porém todo verdade, um baú de sentimentos…

Nessa energia segmentava a fortaleza do meu ser para continuar a resistir ao perigo de cair em um pranto profundo. Quando outrora o sol rasgava o céu sanguinolento lembranças descabidas maltratavam-me. O calabouço do destino apertava continuamente minha garganta… era desagradável e intensa essa escuridão. Mas as ações de Adalberto eram o meu contraste. Um homem carregando uma culpa excessivamente grandiosa, ainda assim mantendo-se neutro pelos desníveis do caminho. Ele era uma fortaleza, um olhar infinito… possuía um poder inimaginável, praticamente absoluto. Tudo o que nomeava ganhava um aspecto, conteúdo e transitava para exercer vida nos ares por efêmeros segundos, alguns dos seus seres sobreviviam por anos e poucos perduravam por milênios, dependendo da função que guardavam em sua essência. Em meio a escuridão de seu sorriso e um descomprometido aceno de mão, meio desinibido, ele conjurava-me, sempre, uma estrela vermelha que brilhava até o seu desaparecer no limiar do sol. Shamá Yasan.

Para onde os passos de Adalberto iam ao cruzar a divisa de meus olhos? O herói do nosso tempo caminhava intempestivo pelos caminhos mais inócuos. Ao longo da agradável brisa das nuvens abrasando-o nomeava tudo que sua consciência conhecia. Perseguia as estrelas avolumadas em sua volta, os pássaros surgiam e desapareciam antes mesmo de terminar a canção de despedida. Era um homem pregresso das utopias de criança, queria ter o entendimento do universo nas suas mãos. Em meio a perdição de seus devaneios encontrou Lana. Quando o destino ousava lhe cruzar a outrem jamais passaria despercebida, a sua cabeça era demasiadamente pesada e constantemente buscava o chão, uma mandíbula abrupta, assustadoramente impactante desdobrava-se diante de si, escamas de cobra constituíam sua pele e os dentes expostos poderiam impor medo a qualquer desavisado. Apenas aparentemente, pois seu corpo era desproporcionalmente pequeno, era um animal roedor que outrora seria serelepe. O curioso ser viajava arrastando-se debilitado, praguejando contra si. Um sólido pedaço das rochas deitava sobre suas costas, impedindo-a cada vez mais de caminhar. O que a faz insistir em prosseguir? Nem uma resposta era convincente o suficiente para responder essa indagação. O peso daquela pedra ia além do impacto sobre seu corpo, era o coração, que da esperança débil prensava-se diante a agonia de prosseguir, seu intento era a razão dessas duas questões… entre a dor e o amanhã.

A dor de não ter alternativas e apenas prosseguir, a crença de que no amanhã não pairá mais a servidão sobre seus filhos. Nesse país todos estavam fadados a levar o peso e o destino de viver. Lana, a cotia ontem serelepe, era mais uma criança que brincava de sofrer e os reis faziam chacota de sua pirraça. Embebecida do veneno de sua fúria a impelindo a acreditar que encontraria sentido no pico daquela montanha arrastava-se na firme convicção de sua revolta. Lugar de rei é com a cabeça girando pelo precipício. Porém, a pedra era um fator limitante que a impedia, ora mais forte e intenso, retirando todo seu poder de reação. Qual é o seu sonho? Adalberto pode ver uma majestosa espada brandindo em sua vista, o fardo nas costas se rompendo, um rugido sepulcral, para o fim de seu cárcere tudo se condiciona, o frio na espinha das desculpas caindo, é a expectativa para o final. Piatá Yamá

O poder de Adalberto revelava as coisas que eram. Tudo o que existia no horizonte da compreensão mortal, seu poder, daria algum dia uma forma. A moléstia dos deuses foi dada a esse homem para o mundo conhecer e descobrir as desventuras ocultas nesse escuro. E quantas verdades escondiam-se em meio as nuvens… por sobre as vestes imponentes do reinado caído, por sobre a sombra da carcaça dormente de Deus. Para si roubou o legado dos anjos e resolveu desempenhar o papel divinal revelando que do sacro precede a insensata razão. A origem do ímpeto, iniciada na propulsara mente, abstraindo o que há de nada ser nesse ar e transformando-o em nome e lembrança para fazer parte do plano dos homens… as coisas como são… um poder imensamente elegante e vultuoso.

No entanto, possuía suas barreiras…

Dani, o mensageiro, divisava pelo mar de areia levantando-se ao redor dos pesados passos. As seis pernas grandes, escamadas, tocavam o solo abrindo lacunas superficiais, o corpo mediano aluviando pelo vácuo. Os pés se locomoviam no chão com destreza e agilidade o que permitia correr muito rápido, mais forte que o som, orgulhava-se do seu grande dom de percorrer por todo o reino antes de qualquer ser. A coragem fora ressignificada naquele estágio permitindo ir mais próximo ao horizonte de seus objetivos, menos monumentais do que anteriormente fizera. Havia conquistado muito por sua agilidade, porém não mais conseguia parar, descansar e poder admirar a lua, como antes fazia… não se lembrava em qual momento começou a correr, não sabia exatamente o motivo que o levara a ir com tanto vitalidade para o indistinto, apenas descobria-se cansando de observar o dia descendo pelo horizonte e não poder ao menos emocionar-se outra vez com o espetáculo de enlouquecer pelo gozo mundano.

Quando foi o momento que renegamos esse estranho sonho de viver? A minha antiga vida é apenas um farol distante, sou mais um velocista do campo neutro dos sentidos às margens do mar do destino. Se me dessem asas poderia recriar esse mundo novamente e eliminar o mal que o consome. Xmartá Iã. O nosso mundo é essa eterna plenitude, é o nada ser, é sentir as coisas que não são, por não lograrem ter nome. Simplesmente sentir o toque da pele macia sobre minha face e desejar que os céus abençoem essa cabeça que não para de planejar rotas de fugas e esquecer-se de existir bem livre e sempre ser. Sentir o nada é poder aproximar-se dos outros com um sorriso vadio nos olhos e ser correspondido, sem as tolas palavras que nada significam, sem os decadentes conceitos que a tudo aprisionam.

“Tu és, Adalberto, o escravocrata desse tempo!”

Dani jogou-se diante de Adalberto, repleto de um ódio voraz, a força daquelas asas acalentava-o e lhe deu uma acolhedora luz… para entender a plenitude na morada do nada. Seus punhos eram como a catálise de sua cólera repreendida, a face daquele homem ojerizava-o, ele um escravocrata, escravo de seu destino. Imprime-se e esconde em seus gestos, articula-se diante as mentiras de suas palavras, mas está completamente nu diante a toda confusão exposta. A dor na sua face é real, Adalberto, todavia a ferida no seu coração é muito mais abstrata e ininteligível… somos todos esses seres, indecifráveis aparências. As coisas como são estão presas nos nomes, as coisas são em si delimitadas nos conceitos que se fazem que sejam.

“Eu não tenho escolha se não carregar esse fardo” Não sei dizer se poderia ver lágrimas saltitando de seus olhos, mas percebia o escuro apascentando-se sobre nós.

“O que houve com sua alegria, meu amigo?” Ela perdeu-se nesse horizonte que traçaste?

“Está bem aqui, não vê?” Seu sorriso, esculpia-se para mim…

“Adalberto… seu sorriso é como um abismo.”

A esposa o abandonou, porque sempre vivia sorrindo e sonhando, mesmo quando os roedores invadiam a cozinha ou quando a cabeça pulsava dolorida demais… seu sorriso abria a janela da imensa ruína de suas dúvidas. A aparente leveza carregada no semblante pertencia a um artista de seu próprio e misterioso vazio. Aquele vazio incorreto da limitação mortal, aquele que estranha-se e não reconhece mais o viver. A dor que incompreensiva dorme em nosso peito silencioso, no escuro se retratando nessa morte audaz.

“Por que me destes esse dom? Só me fazes sofrer!” Lágrimas lhe fugiam o rosto. Tolo. Nada lhe foi dado, tudo o que você conquistou surgiu de sua procura. Era um homem de vestes brancas esvoaçantes sobre o vento, sua face era transparente a não ser pelos óculos quadriculados.

“Senhor deixe-me lançar nesse abismo… Nada tenho!” Estavam no final da fenda do precipício, a ponta da serra na ínfima altitude do país das nuvens.

“Tu não podes morrer, pois é mais que um homem, é uma ideia”

“Veja, querido…” O homem mostrou um candeeiro para Adalberto…

Ele via a si mesmo… nas celas do subterrâneo no monumento central do majestoso olimpo, onde diariamente despendia seu talento numa ingrata perca de força… Adalberto diariamente conjura suas dores no silêncio absurdo da sepultura do medo. Conjurava correntes para atar a defesa ao inimigo das nuvens, o projeto político de sua majestade. Ele está preso nas correntes que conjura. Preso em si mesmo, preso no conceito de si. Adalberto não sabia se seu dom fazia o bem ou era um malogrado… os objetos que conjurava as coisas em si, ganhavam sua forma e plenitude, mas eram angustiados na prisão de ser o que é. Apenas eram o que deveriam ser, meras palavras, não mais as ideias escondidas no absoluto.

“Seja a abstração de si mesmo, meu caro”… Ele ainda dizia:

“Seja um ilusório sorriso e deixe levar-se, nada mais importa!”

“Nada mais importa e por isso sou feliz…”

Como vivia não era o que sempre sonhava, mas o que será que ele sonhou? Não lembrava mais, porque nada realmente significava alguma coisa… Os sonhos são as mentiras que os homens adoram se atormentar para fingir que o tédio não é menos que uma condição própria de sua espécie… o amor os unia através das dores e eles aceitavam a muito bem em seu sono, mas quem pode amar Adalberto, um inventor de abstrações? Quem o abraçara sujo como é?

Esse meu companheiro, talvez seja o homem mais poderoso desse mundo, mas está adormecido na sua solidão. O que chama de essência vive em um quarto branco, guardado as chaves, tremendo de medo… existir é bisonho, não sentir mais nada é uma dor, uma dor de sair pela calçada e não encontrar nenhum rosto. Adalberto é sempre sozinho, mas ele não consegue entender o porquê. Adalberto conjurou todo esse mundo de utopia, mas parece que tudo se voltou contra ele.

Não serei eu que poderei responder isso, ou confortar o meu amigo, já que sou apenas mais uma de suas invenções. Meus braços já não doem apesar de estarem esticados nessa tira de madeira, não sinto o tétano invadir a mão e nem mesmo a respiração falhar mais… as feridas abertas e essa coroa de espinhos não me trazem mais as antigas dores, apenas o que me faz sofrer é essa tragédia humana sobre meus olhos…

Há quem diga que Adalberto é um devaneio meu… mas não sei quem pode ter dito isto se estou sozinho nesse imenso vazio sobre minhas costas.