Caminho de Santiago - Cap. 32/32 - De O Pedrouzo a Santiago de Compostela - Final

Por mais que tentasse, não conseguia conciliar o sono. Revirava-me no beliche dentro do saco de dormir. Ia ao banheiro, descia ao salão do albergue, ia à cozinha beber água e voltava pro beliche. Nada de sono......

As horas passavam vagarosamente. Meus pensamentos voavam nas asas da inquietação. Eu estava por demais excitado com tudo aquilo. Subitamente o dormitório começou a iluminar-se com os lampejos de uma tempestade que se aproximava. Os trovões acompanhavam a mudança do tempo rugindo demoradamente. Isso acabou de vez com o meu sono.

Finalmente ela chegou: uma chuvarada daquelas!!!!

Aproveitei para pegar meu pequeno Guia do Caminho comprado em Sárria e analisei os 20 quilômetros finais com o auxílio de uma lanterna. O trajeto era praticamente plano, exceto por uma subida de 71 metros de Amenal ao Alto de Barreira.

A chuva então parou. Olhei para o relógio: eram quase 3 horas da manhã. Tem que ser agora, pensei.

Calcei-me silenciosamente, peguei minha mochila e o cajado e deixei o dormitório com cuidado. Na portaria, não havia ninguém. A pesada porta de madeira podia ser aberta por dentro e fechada por fora, bastando puxá-la ao sair – e assim o fiz.

Logo estava na estrada. Ainda podia ouvir a água da chuva correndo para os bueiros. Tudo completamente deserto. Não havia ninguém lá fora, somente eu e Deus.

Fui andando pelo acostamento da estrada até encontrar em Amenal o desvio para a trilha. Não quis entrar, pois imaginei que deveria estar bastante enlameada por causa da chuva que havia caído e continuei até passar pelo tal Alto de Barreira. Ali entrei para o Caminho propriamente dito e continuei.

Passei por bosques, por pequenas aldeias e também ao lado de igrejas e cemitérios. Evitava fazer ruído com o meu cajado, pois os cães poderiam latir. Todos dormiam, exceto eu. Não havia uma única alma nas ruas.

Estava em meio ao bosque quando vi por entre as copas das árvores o céu ser riscado novamente por relâmpagos. Após o estrondo dos trovões, lá veio ela de novo: uma chuva de pingos grossos e gelados acompanhada de vento.

Apressei-me em retirar a mochila e coloquei a capa. Quando consegui, já estava totalmente ensopado. Meus tênis faziam aquele ruído característico: xác, xác, xéc, xéc - enquanto eu andava, pois estavam completamente encharcados. A pequena lanterna que eu carregava presa à cabeça começou a piscar e a ficar cada vez mais fraca - ou porque as pilhas se exauriram ou porque a água da chuva havia entrado nela. Comecei a ouvir ruídos, provavelmente de animais se locomovendo entre as árvores e arbustos. Não me importei e segui em frente tateando o terreno. A lanterna agora apagara de vez. A escuridão era total e eu aproveitava a breve luz de cada relâmpago para poder me situar e verificar onde estava pisando.

O barulho provocado pelos rios ao lado dos quais eu passava, ia aumentando cada vez mais em razão da água recebida da chuva. Comecei a arrepender-me por não ter ficado no albergue até amanhecer. Aquilo tudo perecia ser uma loucura: eu caminhando de madrugada num país distante, debaixo de um temporal e no meio de uma floresta, agora escura como o breu.

Subitamente parei e fiquei imóvel como uma estátua: atrás das árvores pude distinguir luzes vermelhas piscando intermitentemente. Relaxei quando lembrei que havia visto no guia uma referência ao aeroporto de Santiago de Compostela. Eu estava na localidade de Lavacolla e aquela era uma das torres auxiliares de aproximação que indicavam o rumo da pista às aeronaves.

Finalmente cruzei todo o bosque e ao passar por Vilamaior, a chuva e o vento pararam por completo. Tirei a mochila e a capa e resolvi ficar sentado no banco de uma praça me recuperando.

Retomei a caminhada e após passar por San Marcos, cheguei ao tão sonhado Monte do Gozo, assim chamado porque dali é possível finalmente avistar-se meio ao longe a cidade de Santiago de Compostela.

Eu havia conseguido!!!!

Foi impossível conter a emoção e comecei a chorar. Eu estava sozinho ali, ninguém mais. Pude dar-me então ao luxo de gritar com toda a força dos meus pulmões: Ahhhhhhhhhhhhhhh!!!!! Era um grito de conquista, de realização, de alegria e de vitória!!! Devo ter acordado toda a Galícia.

Não quis esperar nem mais um segundo. A passos largos fui descendo em direção a Santiago de Compostela. Ainda deveria vencer outros quatro quilômetros e meio, mas isso não seria problema - depois de ter feito o Caminho, qualquer distância menor que 10 quilômetros passou a ser “logo ali”.

Fui entrando na cidade como um conquistador. O dia agora clareara totalmente como que a dar-me as boas-vindas.

Um milhão de pensamentos cruzavam a minha mente. Curiosamente eu sentia um misto de alegria e tristeza. Estava feliz por ter completado o Caminho, mas triste pelo fato de ter chegado ao final. É como atingir o clímax: depois dele não há mais nada – só o silêncio e a certeza de que acabou. Um verdadeiro paradoxo.

Tomei café logo na entrada da cidade e fui ao Albergue Menor Belvís para hospedar-me. Na recepção, perguntei ao administrador se não havia recebido a caixa de papelão que eu despachara de Estella para ali em meu nome com as coisas que carregava em excesso.

- Sim, recebemos, mas jogamos no lixo porque você deveria tê-la mandado para o correio de Santiago. Aqui não podemos reter pacotes de ninguém. Se todos os peregrinos fizessem o que você fez, não teríamos lugar para guardar mais nada. Ademais, você não nos pediu autorização para enviar o pacote pra cá.

Fiquei meio aborrecido, mas não pude deixar de admitir que ele estava com a razão.

- Está bem – tudo certo e muito obrigado, falei.

Tinha acabado de me girar para subir pro quarto, quando ele me chamou: tinha nas mãos o meu pacote e na face um sorriso.

- “Pero si haces eso de nuevo te lo pongo en la basura”, disse franzindo as sobrancelhas e fitando-me ainda com ar de censura.

Não, eu certamente não faria aquilo de novo - tinha aprendido a lição.

Tomei meu banho, troquei a roupa e fui para o centro de Santiago. Ali comecei a encontrar muita gente que havia conhecido pelo Caminho. A cidade era uma festa só. Muita alegria, muita gente se abraçando e dando-se os parabéns mutuamente pela conclusão da caminhada. Alguns bebiam canecões de cerveja nas mesas dos bares - já outros seguravam suas taças de vinho de pé em plena rua. Avisaram-me para ir logo pegar a Compostelana, antes que a fila aumentasse. Olhei e vi que realmente estava pequena - fui aproveitar a chance.

Já com o certificado de conclusão do Caminho em mãos, fui para a Catedral de Santiago de Compostela assistir à Missa do Peregrino, durante a qual um enorme “Botafumeiro”, na realidade um turíbulo de 80 quilos e 1,60 metros de altura, fica oscilando como um pêndulo acima dos presentes espalhando incenso pelo ambiente. É tão pesado que essa operação deve ser feita por vários padres auxiliares que ficam puxando de forma cadenciada a grossa corda. Dizem que no passado, o incenso servia para disfarçar o mau cheiro dos peregrinos. Também ouvi dizer que nos primórdios do Caminho, os peregrinos tinham seus nomes citados durante a missa. Isto hoje é praticamente impossível.

Entre os cânticos e o som do órgão, agradeci emocionado aos céus por ter conseguido chegar depois de tantos dias, de tanta luta.

Pedi novamente a Deus por todos que conhecia e também que a humanidade encontrasse paz. Aproveitei o momento para lamber minhas feridas e fazer uma faxina nos porões da minha alma. O homem nada é sem seus sonhos, mas da mesma forma não existe sem sua fé e a misericórdia divina.

Voltei ao Albergue e lá encontrei finalmente o casal de Santa Catarina: Paulo Dom Quixote e sua simpática esposa Marta. Eles também estavam hospedados ali.

Convidaram-me para tomar um vinho no refeitório. Não havia taças nem copos de vidro e acabamos tendo que usar os de plástico mesmo.

Entretanto foi um dos melhores vinhos que já tomei - não só pela qualidade, mas principalmente pelo momento que desfrutamos juntos.

E exatamente como havia ocorrido em San-Jean-Pied-de-Port antes do primeiro dia do início da nossa caminhada, também jogamos muita conversa dentro.

No dia seguinte fui conhecer Finisterra, o ponto mais ocidental da Espanha, onde os peregrinos costumam queimar as roupas e objetos usados durante o longo percurso. Para mim tudo havia terminado ali, ainda que eu não tivesse queimado absolutamente nada.

Voltei para Santiago e no dia seguinte embarcaria para Madri, de onde pegaria meu voo de volta para o Brasil.

Como seria a minha vida depois de tudo o que vivi nessa mística caminhada? A mesma certamente não seria.

A gente sai do Caminho, mas o Caminho nunca mais sai da gente. É um fato.

F I M

Sergio Righy
Enviado por Sergio Righy em 12/09/2017
Reeditado em 29/09/2017
Código do texto: T6111935
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