O Patrono das Causas Impossíveis
Noite de São Judas Tadeu. A tempestade no meio do Atlântico Norte foi recebida com alívio nos navios que compunham o comboio rumo à Inglaterra, composto basicamente por pequenos cargueiros classe "Liberty ship". Presumivelmente, isso iria reduzir a possibilidade de que fossem localizados pelas aeronaves nazistas de reconhecimento aéreo, baseadas na França, e, consequentemente, se tornassem alvo para os temíveis U-Boots.
A bordo do S.S. "Aunt Eleanor", Pedro Soares da Gama, um descendente de portugueses nascido em Newark e operador de rádio da embarcação, concluiu seu turno e vestiu uma capa de oleado, depois de olhar pela janela da sala de rádio a chuva que varria o convés da embarcação.
- Vai lá pra fora com esse tempo? - Indagou seu chefe, o nova-iorquino Rick O'Malley.
- É o Gomes... está na enfermaria. Pediu que lhe levasse uns cigarros antes que eu fosse dormir...
- Gomes... ainda não sei o que há de errado com ele - comentou O'Malley. - Para alguém que é bombeiro embarcado há dez anos, ele tem problemas de enjoo demais...
- Pode ser uma úlcera, chefe - retrucou Soares da Gama, prendendo o chapéu de oleado na cabeça.
- E ele ainda vai fumar assim mesmo? - Questionou O'Malley.
- Todos os bons rapazes fumam, chefe! - Riu Soares da Gama, abrindo a porta da sala de rádio e deixando entrar uma lufada de ar marinho e chuva.
E antes de fechá-la, gritou:
- Hitler é contra o cigarro!
Sozinho novamente na sala de rádio, o operador-chefe balançou a cabeça, em aprovação.
- Não deixa de ser um argumento!
* * *
Soares da Gama desceu com cuidado a escada de metal externa que ligava o segundo pavimento da ponte de comando ao convés varrido pela chuva. O mar não estava tão grosso quanto ele pensara a princípio, e o "Aunt Eleanor" subia e descia as ondas de dois a três metros de altura, graciosamente, como uma dama. Na direção da popa, pode ver as luzes de navegação de outros "Liberty ships" próximos.
Equilibrando-se contra o vento, caminhou a curta distância até a enfermaria, e ao entrar, constatou que seu amigo Gomes, também de Newark, era o único "hóspede".
- Ouve lá! - Exclamou Gomes, erguendo a cabeça do travesseiro do catre, o rosto barbado e pálido, os cabelos negros em desalinho. - Trouxe-me os cigarros?
Soares da Gama abriu a capa e puxou um maço de cigarros e uma caixa de fósforos. Gomes olhou para ambos com um sorriso de satisfação.
- Você é um homem de palavra!
Soares da Gama acendeu um cigarro e o pôs entre os lábios do amigo. Gomes deu uma profunda tragada, olhos fechados.
- Sabia que não queriam me deixar fumar? - Comentou. - Disseram-me que se fosse uma úlcera, o cigarro poderia piorar as coisas!
- Você não está realmente com boa aparência - retrucou Soares da Gama.
- Não queira bancar minha mãe - resmungou Gomes. E depois, dando um sorriso triste:
- Mas sei que o fazes por bem.
- Como estão te tratando?
- Bem! Bem! Só tentaram me envenenar obrigando-me a beber leite...
Soares da Gama riu.
- Isto é um verdadeiro milagre de São Judas Tadeu! Você... tomando leite!
- Que já havia bebido o suficiente de pequeno nos seios da minha mãe... - resmungou Gomes. - Mas disseram-me: "ou bebes ou vais ser acusado de insubordinação". Bebi, pois...
E afundando a cabeça no travesseiro após outra tragada:
- É um milagre, sim, Pedro. É um milagre que estejamos vivos no meio do Atlântico infestado de submarinos alemães, num tipo de navio que volta e meia afunda sem precisar de nenhuma ajuda externa...
Respirou fundo e Soares da Gama viu que os olhos do amigo estavam marejados de lágrimas
- Obrigado, São Judas Tadeu... - disse Gomes baixinho. E depois, fez um gesto com a mão despachando o amigo.
- Vai-te, Pedro. Já fizestes muito. Vou poupar-te do triste espetáculo de me ver chorar.
Soares da Gama deixou o maço de cigarros e a caixa de fósforos numa cadeira, ao lado da cama. Depois, virou-se e saiu sem dizer palavra, para a noite negra de chuva lá fora.
- [14-09-2017]