A Derrama

E voltando eu com minha tropa de 48 mulas para São João del-Rei, com uma carga de couros e tabaco, decidi pernoitar com meus camaradas no povoado de Patusca, na localidade conhecida como Figueira Encantada, tradicional ponto de encontro de tropeiros. Enquanto os camaradas cuidavam dos animais e preparavam o jantar, sentei-me num cepo para conversar com um prático de cirurgia, por nome Simão Boaventura, que por ali estava.

- Então, está vindo de São João del-Rei? E que sucessos me conta?

- Por certo que, mesmo enfurnado nos sertões, vosmicê já deve estar sabendo da história da derrama...

- Não se fala em outro assunto, é verdade. Então: vem mesmo a derrama? Me atualize sobre as discussões.

- Os números variam... diz-se que faltam 515 ou 518 arrobas de ouro... e que, desta vez, a Coroa vai exigir o pagamento integral.

- Mas como pode ser isso? Quantos habitantes temos em Minas? Alguém já fez a conta para saber quanto vai dar por cabeça?

- Incluindo os escravos? Ouvi muitas conversas, mas os números nunca são menores do que cinco oitavas de ouro por cabeça...

- Cinco oitavas!

- Pois há quem diga que a conta está errada e que o correto seriam oito oitavas.

- Absurdo! Querem que nos transformemos em ouro?

- Mesmo que fossem só as tais cinco oitavas, eu não as teria. Estou pensando seriamente em me internar nos sertões de Goiás e ir viver entre os índios...

Apesar da gravidade com que o prático pronunciara tais palavras, não pude deixar de rir. Não, ele certamente nada sabia sobre viver nos sertões de Goiás.

- Sugiro ao amigo que se mude para a capital. No Rio de Janeiro, certamente não irão lhe cobrar a derrama...

- Há muita concorrência na capital. Mas sim, sei que fugir de Minas não é solução prática que possa ser aplicada a todos... principalmente aos fazendeiros. Vosmicê tem a sua tropa... se não gostar daqui, pode ir comerciar em outro lugar.

Não era tão simples assim, naturalmente. Mas ser um comerciante que pode mudar de praça, é certamente uma vantagem estratégica nada desprezível. Neste instante, Jeremias, um dos meus camaradas, aproximou-se para avisar que o jantar estava pronto. Feijão-tropeiro, naturalmente.

- Ceia comigo? - Convidei.

- Com muito gosto.

Lavamos as mãos, servimo-nos no caldeirão, e depois de uma rápida oração, começamos a degustar o feijão-tropeiro com farinha de mandioca, engrossado com cebolas e torresmo. Enquanto comíamos, retomamos a conversa.

- E como a notícia da derrama está sendo recebida na vila? - Indaguei.

- Da pior maneira possível, como pode imaginar. Fala-se até em levante contra o governador.

- Levante! E não é contra o governador, é contra a Coroa!

- Coroa que nada faz por nós e só nos explora...

- Isso lá é verdade.

E depois de mastigar um pedaço de torresmo mais duro:

- Imagine o que poderíamos fazer por estas terras se este ouro, que vai para Portugal, ficasse aqui, no Brasil.

- Há muitos cabeças poderosos que pensam como vosmicê. Natural: estes são os que mais teriam a perder. Imagine, ter que pagar oito oitavas por cada escravo...

- E isso dá o que pensar. Como chegaram a esse cálculo de oito oitavas? A cotação oficial, bem o sei, é de 1.200 réis a oitava.

- Por certo, usaram a cotação dos contrabandistas... de 1500 réis - ponderou o prático.

- Mas isso eleva o valor da cobrança! - Constatei.

Nos entreolhamos, subitamente percebendo a gravidade da descoberta que acabáramos de fazer por puro acaso. Olhei ao redor, e baixei o tom da voz:

- Parece que temos interessados em provocar um clima de rebelião contra a Coroa, já se vê. A derrama só pode ser calculada sobre o valor oficial, nunca sobre a cotação do contrabando!

- Aí, o valor cai... para as tais cinco oitavas, provavelmente.

- Ainda assim, um roubo - sussurrei.

- Mas se vosmicê estivesse pesadamente endividado com a Coroa, o que seria melhor do que levantar o povo contra estes publicanos portugueses? - Sussurrou de volta o prático.

Fizemos um silêncio tácito. O rumo da conversa havia se tornado perigoso demais para ser discutido ao ar livre, mesmo numa parada de tropeiros no coração das Minas Gerais. Acabei de comer o último torresmo do meu prato, arrotei, e depois de me persignar, exclamei:

- Deo gratias!

- [23-09-2017]