UMA AVENTURA ENTRE AS GUERREIRAS DO SETENTRIÃO

Era início de tarde na confluência das rodovias federais BRs 364/163, na altura do Posto Gil, município de Diamantino, no Mato Grosso. Chovera muito, desde a metade da manhã, mas agora o sol já se insinuava por entre as nuvens, que aos poucos se dispersavam.

No acampamento da construtora, fazia um silêncio que não era comum num sábado à tarde. Ocorre que, com o início da temporada das chuvas, as atividades de terraplenagem tornavam-se inviáveis na maioria das frentes de trabalho. Por isso, os trabalhadores do trecho já estavam sendo dispensados para passar férias com os familiares, em seus diversos estados de origem. E lá permaneceriam, para além das férias, até que as condições pluviométricas permitissem a retomada dos trabalhos. Apenas as equipes técnica e administrativa permaneceriam, parcialmente, no acampamento.

Meus colegas se dirigiram uns para a cidade de Nortelândia, outros para Arenápolis e Alto Paraguai, e uns poucos para Diamantino que, apesar de ser a mais próxima e a melhor entre as cidades citadas, era meio sem graça, com uma população pouco acolhedora e bem menos divertida que as demais. Convidaram-me, mas eu não estava disposto a farras naquele fim de semana. Já curtia a expectativa das férias que se aproximavam.

Lia, deitado em meu quarto, com a porta entreaberta, quando ouvi um barulhinho que, de início, me pareceu de um cortador de grama. Depois, achei que fosse o teco-teco do Gil, que costumava fazer sobrevoos pela área. Olhei para a porta e vi um resto de cauda de aeronave (mas não era o avião do Gil) que aterrissava bem ao lado do nosso acampamento. Saltei da cama, caí dentro de um par de sandálias e fui ver de que se tratava.

De uma diminuta aeronave anfíbia - porém alta, por causa do duplo trem de pouso -, saltava uma jovem e esbelta morena (outro dia, vendo um episódio da antiga série Mulher Maravilha, lembrei disso, pois a morena se parecia bastante com essa personagem). Mal pôs os pés no chão, gritou: "Boa tarde!", com um timbre que era mais música que outra coisa.

- Boa tarde!, respondi. E emendei: Algum problema? É um pouso de emergência?

- Não. Esse é um pouso rotineiro para a minha nave.

- E de que planeta te traz essa "nave"? - brinquei.

- Do planeta Mato Grosso mesmo!

- Deseja falar com alguém? Aqui só estamos eu, uns funcionários da manutenção e o vigilante do turno.

- É você mesmo que eu busco!

- Como assim? Você não me conhece!

- Não esteja tão certo! Venha, vamos ver a paisagem de cima!

- Vamos demorar?

- Venha! Esqueça o tempo! O excesso de preocupação com ele leva o ser humano a angústias e depressão.

Por que não? - pensei. Dei três pulos até a porta, tranquei-a e, do jeito que estava, de bermuda, camiseta e sandália, entrei no avião, onde estava uma segunda jovem, esta meio aloirada, mas não menos esbelta e alta que a primeira.

- Isso é um sequestro, é? Que diabos querem comigo?

- Relaxe, querido! Temos caras de bandidas?

- Caras não têm. Mas nunca se sabe...

Sem mais conversa, a morena apertou uns botões, ligou e acelerou o motor, ajustou a manete e, quase de um salto, não mais que setenta metros percorridos, o aviãozinho ganhou os ares!

Tentei puxar assunto, mas não me concederam nada! De repente, a "loira" virou-se para trás (ela estava na frente, ao lado da piloto) e me colocou uma venda nos olhos. Aceitei o jogo. As meninas não me pareciam más. Então, a piloto começou a descrever grandes círculos no ar, com o aviãozinho. Depois seguiu em linha reta, creio que no rumo norte, por cerca de vinte e cinco minutos e, novamente, grandes círculos no ar, por uns quinze minutos, como da primeira vez. Daí em diante, seguiu em linha reta, por mais meia hora. Mas eu já não sabia o rumo. Então me retiraram a venda.

Olhando pela janelinha, vi o sol que declinava para oeste. Dei-me conta de que, apesar da manobra dos círculos no ar, nossa proa era o norte, desde a decolagem. Vendar-me os olhos não foi de muita valia. Se bem que aquilo podia ser só uma forma de me testar... Então, volto o olhar para leste e vejo, lá embaixo, a talvez quinze ou vinte quilômetros de distância, uma clareira que, pelas características, devia ser o acampamento de Tapurá, onde estava um grande amigo, o Heleno, que deixara a nossa equipe e agora administrava o RH dessa nova unidade da empresa. Eu não estava tão perdido assim.

Outros quinze minutos de voo e a paisagem começa a mudar. À nossa frente, surgem ondulações no relevo, que fora razoavelmente plano desde o início da viagem - pelo menos a parte em que estive sem a venda. Essas ondulações vão ganhando volume rapidamente. Mudara também a vegetação, o que indicava estarmos na zona de transição entre o cerrado e a floresta amazônica. Entre duas elevações que se encontram, forma-se algo que lembra o regaço de uma mulher. E no triângulo que se inscreve, a vegetação, mais densa e escura que a circundante, torna a semelhança ainda mais incrível, parecendo um púbis feminino.

Nessa altura, a aeronave descreve um extenso arco, que começa ascendente, da esquerda para a direita, e sobrevoa o grande púbis que eu avistara de longe. Concluído o arco, a piloto inicia o descenso, aproximando-se de uma minúscula área limpa de terreno, situado na base do abdome, entre o púbis e o umbigo (se aquilo fosse mesmo a escultura de parte do corpo de uma mulher).

- Ei! - eu disse - Você não está pensando em descer aí, está?

- Estou sim! A gente desce e decola aí quase todos os dias.

- Mas é muito pequeno! Deve ter uns vinte metros.

- Tem cem. É maior que o lugar onde descemos para te apanhar.

Pousamos. Do meio da mata, vinda do lado leste, ouço uma algaravia de vozes femininas e, em seguida, surgem umas vinte mulheres, todas jovens, para nos recepcionar.

- Aqui é o nosso "planeta" - disse-me a morena. Meu nome é Alena. Minha companheira é Natcha. E apresentou uma por uma das ali presentes. E você, como se chama?

- José. - eu disse.

- É só por formalidade, viu José? Eu, Natcha e Firmina, que você conhecerá em seguida, sabemos de você mais que o nome completo.

Acompanhados das demais mulheres, entramos na mata e seguimos por uma trilha que era verdadeiro túnel na densa e entrançada vegetação. Se o grande plano em que se assentavam era o púbis, a área em que construíram suas instalações era uma parte ainda mais íntima daquela curiosa montanha-mulher. Chegamos a um amplo pátio, uma espécie de anfiteatro, com poltronas em semicírculos, sob uma abóbada natural, em que paredes e teto eram as árvores, cujas copas se entrelaçavam. Sobre a área de piso, uma lona plástica e transparente impedia que as chuvas abundantes e frequentes molhassem o pátio. Explicaram-me que monitoravam constantemente as condições das árvores, para evitar que galhos danificados pudessem cair sobre a lona, rasgando-a. Dezenas de mulheres estavam ali.

- Aqui só tem mulher? - perguntei.

- Sim. - disse Alena.

- Uma espécie de matriarcado... - arrisquei.

- Olha aí! - disse Natcha - Acho que podemos rebatizar nosso reino, hein Alena?

- E eu (estranhando como não tiveram a ideia antes): Como se chamava?

- Deixa pra lá! Agora é matriarcado, ainda que contrariando o conceito clássico. - respondeu Alena.

Horas depois, Firmina me revelaria que o nome era República das Guerreiras do Setentrião. Agora se chamaria Matriarcado das Guerreiras do Setentrião. Teriam que mudar o estatuto.

Aquele "setentrião" era só uma alusão a norte. Mas achei meio exagerado.

Aos poucos, as poltronas foram sendo ocupadas. Centenas de jovens mulheres tomaram assento e Alena completou as apresentações, iniciadas quando da nossa aterrissagem. Ela informou que o efetivo da comunidade era de duzentas e quarenta mulheres, com idades entre dezoito e trinta e sete anos, e cinco crianças com até seis meses. Esse era o limite para que crianças nascidas na comunidade ali permanecessem, sendo amamentadas pelas mães. Depois, eram enviadas aos cuidados de parentes, em suas cidades de origem. Se meninas, ao completarem dezoito anos - e assim o desejando -, poderiam voltar para a comunidade. Quando isso ocorresse, alguém teria que deixar o matriarcado, abrindo vaga. Se não houvesse voluntária, haveria sorteio entre as maiores de vinte e oito anos. O estatuto excetuava dessa regra Alena, Natcha e Márcia, principais fundadoras da comunidade.

Durante as apresentações, fiquei sabendo que sete das habitantes estavam ausentes, em visita a parentes nas cidades de Rosário Oeste, Cuiabá, Goiânia e Campo Grande, e que duas crianças nascidas na comunidade e hoje morando fora, estavam ali, em visita às mães.

- Como vocês resolvem o problema de transporte, se só têm esse aviãozinho? - indaguei.

- Temos embarcações e motocicletas. E um rio navegável, que surge da serra e passa sob nós, indo aflorar a três quilômetros daqui, da boca de uma caverna. - informou Natcha, que emendou:

- Agora venha! Vai conhecer o nosso reino.

Acompanhado de Natcha e Firmina, conheci uma nascente, de onde a água brotava fresquinha e pura, vinda das entranhas da serra. Essa água, perfeitamente potável, era distribuída por gravidade para a aldeia. O que sobrava, corria por um leito natural, rochoso, que se desviava para a esquerda, indo depois, por outras curvas, desaguar no rio, lá embaixo. Sob a aldeia, dois extensos e largos túneis, curvos e opostos, iam desembocar num grande átrio, dando (o curioso conjunto) a ideia de duas trompas e um útero. Nessas cavernas, secas, funcionavam todas as atividades fabris e artesanais das mulheres, seus escritórios e ateliês. Natcha me disse que, entre elas, havia meninas com as mais diversas formações. Havia engenheiras, médicas, uma psicóloga (Alena), enfermeiras, odontólogas (uma delas era Firmina), veterinárias, agrônomas, químicas, farmacêuticas, biólogas, nutricionistas, geólogas, geógrafas, meteorologistas, artistas plásticas, escritoras, jornalistas, ex-militares (entre elas, a capitã Márcia, que servira em Israel), marceneiras, costureiras, pedreiras, etc. Todo mundo tinha, ao menos, o nível médio, com alguma capacitação técnica. Cursos eram ministrados na aldeia, com vistas a essa capacitação, para quem não a possuísse. Já o nível médio, era pré-requisito para quem pretendesse ingressar na comunidade.

O corpo de segurança contava com trinta e seis guardiãs efetivas, mais dezoito reservas. Porém, toda a comunidade recebia treinamento militar, visando à segurança da aldeia. Três eram os postos de vigilância. Dois deles, altos e camuflados, um a norte e outro a sul da aldeia; e o terceiro, mais bem equipado, situava-se na caverna, a leste, de onde saía o rio. A oeste havia a proteção natural da serra. No posto da caverna, que permitia acesso à aldeia através do rio, o efetivo era dobrado (quatro guardiãs por turno), e o armamento, de alto calibre. Nos outros dois postos, as guardiãs usavam arco e flecha. Por pelo menos duas vezes, nos então mais de nove anos de existência do matriarcado, grupos de caçadores e pescadores foram rechaçados pelas guardiãs do terceiro posto. Homem nenhum jamais entrara ali, a não ser sob convite e condução das próprias moradoras.

Embarcações e motocicletas tinham atracadouro e estacionamento na ampla caverna que paria o rio. Dotadas de reboques, essas motos eram levadas a atracadouros próximos a sedes de municípios, de onde traziam para os barcos aqueles suprimentos de que a comunidade precisava e que não eram produzidos na própria aldeia. A baixa capacidade de carga do aviãozinho não dava conta desse serviço. Apenas medicamentos e algum produto de higiene e beleza pessoal eram trazidos por via aérea.

Embasbacado com o que via e ia conhecendo, perguntei de onde vinham os recursos para manter aquilo tudo. Ao que Natcha respondeu:

- O matriarcado é praticamente autossuficiente. Produzimos quase tudo de que necessitamos e mais alguns itens que não consumimos. Então os vendemos e, com o dinheiro, compramos o que precisamos e não temos.

Ela me informou, ainda, que Alena era única herdeira de seu avô materno, minerador de diamantes, que lhe deixou uma grande fortuna. Só a área do matriarcado media bem mais de dois mil hectares. E havia outras propriedades, rurais e urbanas. A mãe de Alena, que perdeu o marido por afogamento numa pescaria no Rio Cuiabá, casou-se em segundas núpcias com um canadense que fazia negócios de diamantes com o pai dela. E foi morar no Canadá, deixando a menina com o avô, ao qual era muito apegada. Quando do testamento, abdicou da herança em favor da filha.

- Esse aviãozinho - disse Natcha -, que parece um teco-teco qualquer, tem autonomia e velocidade muito maiores que seus similares, e motor econômico, que utiliza gasolina comum e não gasta mais que um automóvel de 120 cavalos. É exemplar único, uma espécie de protótipo, desenhando e construído por um engenheiro, amigo de Alena, que hoje trabalha na NASA. O matriarcado não produz riqueza excedente que comporte uma aquisição dessa envergadura. Foi Alena quem o comprou.

- É uma aeronave clandestina?

- Não. Tem toda a documentação dos órgãos competentes. E cópias do projeto nesses órgãos. Inclusive no ITA e no comando superior da aeronáutica.

Firmina, que nos acompanhava o tempo todo, não dizia uma palavra. Notei que me observava muito. Tímida, evitava o meu olhar. Quando, finalmente, pude olhá-la nos olhos, ela sorriu e eu retribuí. Então ela me enlaçou pela cintura e eu a abracei pelos ombros. Dessa maneira, continuamos a caminhada.

- E a hierarquia aqui, como funciona?

- Não há. - disse Natcha - Alena, proprietária e uma das principais idealizadoras da comunidade, assume responsabilidades de líder, que de fato é. Mas todas aqui têm os mesmos direitos e obrigações. Para as tarefas comuns, de interesse geral, todas contribuem em cotas mais ou nenos iguais, inclusive ela. Serviços de limpeza, lavagem de roupas de uso coletivo, produção e coleta de alimentos (temos horta e pomar orgânicos) são realizados por todas, numa escala organizada em calendário. Além disso, cada uma presta serviço na sua especialidade, sempre que necessário. Eu, por exemplo, desenvolvo atividades de agrônoma, que é minha profissão.

A tarde declinava, quando Alena reapareceu e incorporou-se ao nosso grupo. Anunciava que o jantar seria servido em menos de uma hora.

- Tão cedo por quê? - perguntei.

- Para não irmos dormir com os estômagos pesados. Antes de irmos para a cama, a partir das vinte e uma horas, tomamos uma refeição leve. Uma fruta com pouca ou nenhuma acidez. Ou um chá com biscoitos.

Dali, seguimos para a enfermaria, onde estava a única "doente" da comunidade, no momento. Era a veterinária Venância. Ao socorrer um mono, que não conseguia sustentar-se num galho, caiu do mesmo, com o bicho nos braços, quebrando uma perna.

Uma coisa que saquei por mim mesmo, com base em observação e em pequenas gafes cometidas pelas meninas, foi que o nome que a maioria delas usava não era o verdadeiro. Ou eram pseudônimos, ou eram formados por abreviação, anagrama, supressão de sílabas ou de nomes inteiros, em caso de prenomes compostos. Assim, Alena bem que poderia ser Madalena; Natcha, Natacha, etc... Porque não se pergunta a uma mulher o seu verdadeiro nome, da mesma forma que não se lhe pergunta a idade.

Alena devia andar pelos trinta e dois anos, já que fundou a comunidade no ano em que se formou em psicologia; Natcha estaria na mesma faixa de idade que ela. Firmina, algo entre vinte e cinco e vinte e sete anos. Difícil era saber quem eram as veteranas, de mais de trinta e cinco. A capitã Márcia,responsável pelo treinamento militar e segurança da aldeia, bem que podia ter trinta e sete. Mas seus óculos escuros e a boina de guerrilheira dificultavam a avaliação. Todas pareciam muito jovens e saudáveis.

Antes de seguirmos para a mesa de jantar, Firmina mostrou-me um banheiro e deu-me uma toalha, uma espécie de bata comprida e uma cueca para eu vestir. Pegou minha roupa e disse que a mandaria lavar.

- Mas vou precisar dela amanhã cedo! - reclamei.

- Vai não. - ela disse. Você não vai embora amanhã. Pode continuar com a que te emprestei.

- Como não vou embora amanhã? Tenho que trabalhar na segunda-feira!

- Vilna é médica e sócia de uma clínica em Cuiabá, que funciona a cargo de um irmão e uma prima médicos. Tem papel timbrado e carimbo aqui. Pode te dar um atestado.

Respondi que dispensava isso. Se não me deixassem ir, assumiria a bronca lá no meu trabalho.

- Alena apostou que sua reação seria esta. Ela te conhece mesmo!

Ia perguntar como, mas nos chamaram para o jantar, que foi servido no pátio, onde mesas dotadas de rodas foram rapidamente instaladas. Comemos arroz integral, peixe e salada verde. E tomamos um delicioso suco de fruta regional, cujo nome não lembro mais. A certa altura do jantar, Márcia dirigiu-me pela primeira vez a palavra: "Já passou pela sua cabeça, José, que você pode estar sendo preparado para servir de repasto, numa cerimônia de antropofagia, por um bando de mulheres loucas?".

- Não. E sua pergunta não me preocupa. Ainda não sei por quê, e para quê, estou aqui. Mas essa hipótese me parece improvável.

- Ok - disse Márcia -. Daqui a pouco Firmina esclarecerá sua dúvida.

Concluído o jantar, o pátio foi transformado em palco. Três cantoras se apresentaram, dando um show para crítico nenhum botar defeito! Depois, algumas meninas recitaram poemas de suas autorias, de excelente qualidade. E prometeram um show de dança para o domingo.

Firmina me convidou para a sua tenda. Lá chegando, colocou um LP no toca-discos e perguntou se eu queria dançar. Dançamos. Quando paramos, ela pegou um envelope, entregou-me e pediu que o abrisse. Dentro, para minha estupefação, muitas fotos minhas, numeradas, de vários momentos nos últimos três ou quatro meses. Na primeira, eu corria num trecho recém-asfaltado da BR 364, um hábito que repetia três ou quatro vezes por semana. Incrível é que não vi baterem essa foto, em que eu aparecia de frente, em close, como aquelas fotos de velocistas na linha de chegada. A número dois registrava minha presença num clube recreativo em Nortelândia, coisa de dois meses atrás. Noutra, bem recente, eu tomava cerveja com alguns colegas, no bar e restaurante do Gil, que funcionava ao lado do posto de gasolina. E havia muitas outras fotos e informações rabiscadas a lápis em folhas de papel.

- Vocês me espionavam mesmo!

- Esqueci de dizer que temos também ótimas detetives aqui.

- Por que me espionavam?

- Para conhecê-lo bem. Duas das nossas meninas conversaram com você, em mais de duas ocasiões. Uma delas até dançou com você lá em Arenápolis.

A seguir, Firmina coloca tudo às claras. Conta que é paranaense de Londrina, onde moram seus pais, irmãos e sobrinhos. Que é filha de um médico paraibano com uma professora paranaense. Depois de formar-se em odontologia e concluir um estágio, veio para a comunidade, para a qual vinha sendo treinada havia anos. Desde que chegou à comunidade, há mais de dois anos, não fez nem uma visita aos parentes. Não tem namorado lá e em nenhum lugar. Mas alimenta um incontrolável desejo de maternidade. Meu papel é ajudá-la a ter um filho. Confessa-o com dificuldade, com a face muito corada e evitando o meu olhar.

- Vocês são loucas mesmo! - reagi, com certa rispidez.

- Eu disse a Alena e Natcha, donas dessa ideia, que isso era loucura! Mas elas acabaram me convencendo de que não. Agora percebo o absurdo. Peço lhe desculpas. Não sei como deixei a coisa chegar a esse ponto!

Aos vinte e nove anos, solteiro, eu ainda não racionalizara a questão da paternidade. Nunca me ocupara do assunto. Via-o apenas pelo viés natural, biológico. Não em seus aspectos socioafetivos, morais e psicológicos. Vendo o embaraço em que se encontrava Firmina, que chorava silenciosamente, com a cabeça entre os joelhos, falei:

- Não chore. Pensando bem, a coisa não é tão terrível assim!

- Que vergonha! Como pude deixar-me persuadir tão profundamente?

Aproximei-me, tomei-lhe suavemente o rosto com as duas mãos, até nossos olhos se encontrarem, e prometi:

- Vou ajudá-la a realizar seu desejo.

Ela chorou ainda mais! Confortei-a, acariciando-lhe de leve os cabelos, o rosto, e pedindo-lhe que se recompusesse. Que, afinal, uma proposta é uma proposta, podendo ser aceita ou recusada. Que eu não estava ofendido. Abraçamo-nos, e assim ficamos por longo tempo, até que cessaram seus soluços e os batimentos cardíacos se normalizaram.

Depois de uma noite de inenarráveis delícias, acordamos no domingo com gritos de ordem unida vindos do campo de pouso. Firmina explicou que se tratava do treinamento militar, que envolvia um terço das meninas, e que incluía atividades de educação física. Dessa maneira, todas as meninas recebiam treinamento a cada três dias.

Firmina e eu preparamos o café na própria tenda. Tomamos e fomos assistir à parte final do treinamento. Terminado este, fui conhecer a biblioteca, dotada de mais de três mil volumes, entre os quais, mais de um mil e duzentos títulos da literatura brasileira e universal. Algumas mulheres já liam ou escreviam nas diversas escrivaninhas existentes no local. De repente, entram Alena e Natcha, que lançam a Firmina um olhar interrogativo, ao qual ela responde com um gesto de que está tudo bem.

Sentamo-nos, os quatro, num canto mais isolado, para não incomodar as leitoras. Ali, fiquei sabendo que aquela comunidade não era só um capricho de meninas ricas e de classe média querendo viver uma experiência exótica. Elas submetiam à práxis uma teoria gestada com muito cuidado. Queriam mostrar que a vida em lugares inóspitos e isolados não é privativa dos homens (ou não seria mais, depois dessa experiência); queriam fugir do feminismo de gabinete, das TVs mulheres da vida; queriam se livrar das cantadas baratas, do assédio moral e sexual a que eram submetidas na cidade; queriam provar, primeiro para si mesmas, que podiam se virar sem nenhum auxílio masculino, em qualquer situação e circunstância. E o estavam provando.

Naquela biblioteca - disseram -, discutiam a questão feminina e a sua própria experiência. Ali estavam sendo escritos relatórios, dissertações e outros documentos, que deveriam ser socializados no futuro, para que a experiência pudesse ser útil a todas as mulheres. A comunidade não tinha prazo de validade pré-estabelecido. Poderia durar dez, quinze anos. Ou poderia continuar por décadas! Viviam a experiência um dia após o outro. Tinham problemas, crises, pequenos desentendimentos. Mas sempre chegavam a um denominador comum.

Durante o domingo, fui conhecer o local onde o rio saía da montanha e a caverna de onde aflorava, que abrigava o principal posto de segurança da comunidade. Também conheci os geradores de energia. Um sistema de duas rodas d'água (as primitivas mini-hidrelétricas) e três moinhos de vento, instalados no alto da serra. E demos uma volta por toda a propriedade. Primeiro, em sobrevoo com o aviãozinho; depois, em três motos equipadas com rodas de montanha. Alena, que nos acompanhava, me disse, cheia de entusiasmo e orgulho:

- Desta serra e destas cavernas, meu avô extraiu diamantes por quase duas décadas!

À tarde, fui com Firmina, a seu convite, num banho de cachoeira. Ao nos aproximarmos do local, ela deu alguns passos à frente, postando-se entre mim e a cachoeira. De costas, tirou a blusa, o short e, finalmente, com a maior naturalidade, e sem nenhum falso pudor, as duas peças íntimas. Então girou cento e oitenta graus e ficou de frente para mim, em toda a sua deslumbrante nudez! E, com a cara mais linda deste mundo, chamou: "Venha!". E vocês acham que eu fiz o quê?

Se há de fato coisas inesquecíveis, aquele banho de cachoeira com Firmina foi uma dessas coisas em minha vida!

Ao anoitecer, as meninas deram o prometido show de balé. Senti-me como se estivesse num dos melhores teatros do país! As garotas do matriarcado mostraram, mais uma vez, que dominavam aquilo a que se propunham. Aplaudi maravilhado!

Minha última noite no matriarcado foi uma mistura de alegria e tristeza. Alegria por estar ali, num lugar incrível, cheio de mulheres bonitas, jovens e inteligentes e, especialmente, pela companhia de Firmina. Tristeza, por ser a última noite e por saber que dificilmente haveria uma terceira, ali ou noutro lugar. As meninas tinham um código bem rígido, e havia segredos sobre os quais eu não ousaria perguntar.

No dia seguinte, acordei às seis horas e vi que Firmina não estava na tenda. Ouvi gritos no campo de pouso e fui lá para assistir aos treinos. Firmina era uma das instrutoras do dia. Vendo-a naquela atividade energética, a girar, subir, descer e espalhar-se no gramado, acompanhada com perfeição por seu grupo de treinandas (umas vinte meninas), pensei em quanto são surpreendentes as mulheres. Quanta diferença entre essa forte e decidida Firmina e aquela do sábado, que quase desaba ante a minha reação ao saber que estava ali, involuntariamente, para ajudá-la a ter um filho!

Para a minha despedida, reuniram-se no pátio quase todas as mulheres. Algumas tomaram a palavra e me agradeceram pela "visita". Uma delas perguntou se eu queria dizer algo. Queria.

- Quero sim! Quero dizer que vou denunciá-las por sequestro, maus tratos e sedução.

Foi uma gargalhada geral! E algumas vozes disseram, quase em uníssono:

- Que lindo! Ele tem senso de humor.

Ri também. E disse que, pensando bem, achava que iria perdoá-las. Recebi muitos abraços. Até Venância foi trazida da enfermaria, numa maca, para se despedir. Agradeci. E dei-lhe o abraço possível a uma pessoa nas condições em que ela se encontrava.

Na viagem de retorno, Márcia foi quem pilotou a aeronave (na volta à aldeia, trariam duas das mulheres que estavam fora). Firmina e eu sentamo-nos nas poltronas de trás. Enquanto voávamos, pedi a ela o número da caixa postal que mantinham no correio da cidade mais próxima à comunidade. Respondeu-me que era exclusiva para uso das guerreiras ou de pessoas com laços de parentesco com alguma delas. Depois, virou-se meio de costas para mim, rascunhou algo a lápis num bloquinho de papel, destacou a folha e enfiou num dos bolsos da minha bermuda.

- Quando descer, leia. - disse.

Pouco mais de uma hora de voo em linha reta e descemos a cerca de um quilômetro do acampamento, no trecho já asfaltado e ainda em desuso da BR 364. Saltei e fiquei observando a decolagem da aeronave, que desenhou no ar uma parábola e voltou, passando bem perto de mim. Firmina me acenava da janela, sentada ao lado da piloto. Acenei-lhe em resposta e estiquei a vista o quanto pude. Com uma lágrima na garganta, vi a imagem do aviãozinho dissolver-se na distância, rumo a Rosário Oeste.

Então saquei do bolso o pedaço de papel. Lá estava escrito, em caracteres grandes, o código de frequência do rádio amador das guerreiras. Abaixo, em letras normais, o seguinte recado:

"Transcorridos nove meses, chame por mim nessa frequência. Dependendo da notícia que eu te der, obterá o número da caixa postal".

José Luiz Barbosa de Oliveira
Enviado por José Luiz Barbosa de Oliveira em 10/01/2018
Reeditado em 11/02/2018
Código do texto: T6221838
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