Um MAluco.COM na BR

Fica difícil definir os caminhos que uma pessoa escolhe na vida. Às vezes traçamos planos, mas a vida muda tudo. Pior é viver sem ter rumo. A música Maluco Beleza, de Raul Seixa, descreve bem este dilema, ao se referir que "esse caminho que eu mesmo escolhi é tão fácil seguir, por não ter aonde ir..."

Meu personagem aqui é exemplo disso: Sérgio Heitor do Amaral Medina, que tinha uma interpretação muito particular desta passagem da canção: quem não tem onde ir, para ele, tem todos os lugares para ir. Bem isso foi o que ele fez, ao dar a volta na América do Sul, em 10 anos, passando por toda costa oeste do continente, colecionando histórias e mais histórias.

Conhecido como Farol, por causa dos óculos "fundo-de-garrafa" que ostentava sobre um nariz esborrachado, era um gauchão de olhos verdes e cabeça grande, com cabelos já ralos pelo tempo, levemente loiros.

Recebo a notícia do seu falecimento em novembro de 2013, por meio de um dos seus 10 filhos, na minha caixa do FACEBOOK: isso mesmo! Dez filhos - todos espalhados pela América do Sul. Em vida, ele pediu para que eu contasse sua vida. Aqui vou tentar.

Conheci o Farol na Faculdade de Direito, em Campo Grande/MS, em 2007. Estava ele com 53 anos e eu com 32 anos. Falava que eu parecia com um filho dele, que morava na fronteira com o Paraguai. Dona Marlene, sua mãe, estava apostando que seu filho terminaria a curso jurídico, para que ele parasse de se aventurar na estrada, pegando carona e seguindo o rumo sem ter rumo.

Farol nasceu na cidade de Santiago, no Rio Grande do Sul, na fronteira com o Uruguai. Uma cidade fria, na qual, conforme suas memórias, começou a trabalhar num matadouro, aos 15 anos. Seu pai era sargento do Exército. Era responsável, segundo Farol, por pequenas humilhações contra ele, por conta do seu jeito disperso, sem vontade de estudar.

No fim dos anos 60, o pai de Farol é transferido para Campo Grande. Era ele (o irmão do meio), o irmão caçula e a irmã mais velha, sendo os dois irmãos dele servidores públicos com vidas altamente regradas. Farol também seguiu, em parte, este caminho, de uma vida regrada, terminando o curso de desenhista e, no começo dos anos 80, conseguindo um emprego na Prefeitura de Campo Grande, na área de projetar casas populares.

Farol passava todos os dias no antigo calçadão da Barão do Rio Branco, centro campo-grandense, sentando para lanchar ali naquelas cercanias. Lá ficava a ouvir a conversa dos "hippies", que, sentados e fazendo artesanato, contavam das praias, das aventuras e da vida de quem não se preocupar onde está e nem o que vai comer no dia seguinte.

Farol conta que na terceira semana, de saco cheio do serviço público, com seus 20 poucos anos ainda, decide sentar naquela roda da "malucada", como ele os chamava. Ali ficou e usou sua habilidade de desenhista para fazer quadros em azulejo, com os dedos e tinta. A roupa foi ficando suja, a barba crescendo e dormir agora era em qualquer "mocó". O "mocó" era qualquer construção abandonada, que desse guarida ao grupo, pois o grupo é tudo para o hippie. Muitos dos companheiros de Farol eram jovens de classe média, alguns de famílias ricas.

Começando suas andanças, já com mochila nas costas e pegando carona na estrada, ou andando a pé dias, centenas de quilômetros, Farol se fixa em Corumbá. Corumbá é o coração do Pantanal. Uma cidade com calor de 40 graus e ruas de pedra às margens de um belo porto no rio Paraguai, numa planície alagada que lembra um oceano praticamente. Uma lugar que faz fronteira com a Bolívia, que se liga ao Brasil pela Ferrovia Noroeste do Brasil, vinda de Bauru/SP.

Uma história muito curiosa que Farol conta é quando um empresário o vê nas ruas de pedra do porto da cidade corumbaense, volta, e lhe dá uma soma de dinheiro, que segundo ele, eram mais de 2 salários mínimos da época, levando apenas um dos seus artesanatos: um caneta ornada com carrancas feitas com durepox. Os olhos do milionário enchem-se de água e Farol o interpela: - O que foi senhor?

A resposta do empresário, por volta dos 70 anos, é que uma neta dele era hippie, e a mais de 3 anos ele não a via mais. Um homem perplexo por causa da neta que abandonou tudo para viver pelo mundo sem rumo.

A maconha é um dos elementos mais importantes da cultura "hippie". Os hippies, segundo Farol, a cultuam como uma dilatação da percepção na forma de contemplação das coisas do mundo. Farol afirmava que a Gênesis bíblica amparava seu consumo, a partir do momento que Deus cria a Natureza para dar alimento aos homens. A maconha seria um alimento espiritual, que os índios usavam até como infusão, como chá e como pasta no Paraguai e na Bolívia, sem maiores pudores. Os hippies não cultuam Deus e nem colocam em dúvida sua existência, pois o hippie busca no diálogo com outro hippie uma dialética quase que budista. Lembre-se que Buda e Jesus foram dois andarilhos também, quase como hippies.

Pegando o trem que sai da Bolívia, na cidade de Porto Quijarro, Farol adentra o continente, indo até as terras altas da Bolívia, convivendo com os povos nativos daquela área. Muitos não sabem, mas, segundo Farol, a Bolívia é uma sociedade de castas, que separa os índios "colha" dos descendentes de espanhóis, mais claros. Há muita humilhação da elite boliviana em relação aos índios - gerando conflitos. A folha de coca é uma das tradições destas populações, que a mascam e tomam o chá para todas dores do corpo.

No Peru, Farol conhece as ideias do filósofo marxista Abimael Guzmán. Na primeira metade dos anos 80 do século XX, o Sendero Luminoso, um grupo de terroristas liderados por este professor, buscava implantar uma revolução comunista naquele país, que veio a ser duramente perseguida por Alberto Fujimori; Farol contou-me que chegou a ficar preso pela polícia peruana, por que citou a simpatia pelo grupo, o qual já havia coordenado várias explosões de carros-bomba e assassinatos políticos na área. O Peru é um país fortemente ligado a selva amazônica e a produção de narcóticos na selva.

Farol conhece, no Peru, uma professora francesa, de nome Rose Marie, que se apaixona por ele. Começam a viajar pelo continente, indo para Colômbia. Segundo Farol, o colombiano é praticamente um brasileiro, mas um brasileiro fora do lugar. Um povo alegre, musical, mas violento também como o do Brasil, com traços de miscigenação entre negros, brancos e índios. Farol me dá uma dica que até hoje pesquiso: a estrada Pan-americana, que um dia pretendo percorrer.

Com a professora francesa, Farol vai para França, chegando a trabalhar no litoral do Mediterrâneo como garçom, mas volta para o Brasil, após desentendimentos conjugais, deixando filho lá, com o qual perdeu o contato, até a morte de Farol.

No Brasil, vai, nos anos 90, para Manaus, onde é vitimado pela cólera. Mais uma experiência: um traficante perigosíssimo da periferia de Manaus pára um táxi e ordena ao taxista que o leve ao Hospital. Como ele evacuava muito água fétida, é enrolado numa coberta e o traficante afirma que toda despesa será arcada pela boca de fumo. Farol contava isso com perplexidade, pois o traficante era acusado de vários homicídios na cidade.

Depois disso, curado, ele anda de bicicleta um ano, entre o Ceará ao Rio de Janeiro, parando nas praias e vivendo de artesanato.

O sofrimento de Dona Marlene era permanente, com o sumiço de Farol; Marlene que acaba criando 7 dos 10 filhos do nosso hippie, cujas mães deixavam sempre com ela os pupilos, pois eram hippies também.

A morte de Farol é muito simbólica, já que ela ocorre na cidade onde tudo começou. Morre em Corumbá, no coração do Pantanal, após ir de Campo Grande a mesma, pedalando sua bicicleta, pois não havia limite para este hedonista. Por fumar e estar pescando numa temperatura de 42 graus, sofre um infarto fulminante em 2013, pela manhã, deixando-me triste por perder um amigo que eu amava conversar.

Uma certa vez, de carro, sai com ele de Campo Grande para Ponta Porã. Numa sentada em Dourados, ele pega restos de pena de pássaros e dentes de animais mortos, mais cobre, e faz várias correntes e pulseiras. Viajamos somente com o dinheiro da venda destes artesanatos, o que me fez refletir profundamente sobre o caráter de contracultura dos hippies em relação à sociedade de consumo - mestres na sustentabilidade.

Aprendi com ele a comer "berimbolo", que é a sopa que os hippies fazem colocando tudo que cada um pode comprar com a venda do seu artesanato - marcando uma forte solidariedade entre estes andarilhos. Aprendi a fazer "chapati", o pão na forma de disco da Bolívia, feito com água, sal e farinha de trigo apenas.

(...)

Descanse em paz, meu Carlitos.

Saudades eternas,

LUCIANO DI MEDHEYROS
Enviado por LUCIANO DI MEDHEYROS em 10/01/2018
Reeditado em 11/04/2020
Código do texto: T6222616
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