Congo

E após acompanhar a entrega de uma encomenda de porcelana chinesa no estabelecimento comercial de Monsieur Rossignol, importador, fui convidado por ele à tomar uma dose de "claret" em seu escritório. Enquanto bebericávamos o vinho, perguntei-lhe o que havia de novo em Nova Orleãs. O meu navio estava sendo abastecido com uma carga de tabaco e aguardente no porto, e só depois prosseguiríamos rumo a São Domingos.

- O amigo ainda vai estar na cidade amanhã? - Indagou-me o importador.

- Sim, com certeza. Só deveremos partir na maré alta...

- Então, provavelmente irá querer assistir à uma execução em praça pública!

- Bem, não é exatamente o meu conceito de diversão, mas... o que teremos? Enforcamento de algum escravo fugitivo? - Ponderei.

Monsieur Rossignol pareceu divertir-se com a ideia.

- Sim, trata-se de um "esclave" o sentenciado... mas não é negro, é um francês branco, um deportado. Pardon!

Deu um tapa na boca, como que para desculpar-se da pequena ofensa que me fizera. Sim, eu havia sido deportado para as colônias de Sua Majestade por 7 anos, pela acusação (fundamentada) de ser simpatizante dos jacobinos, mas minha pena já expirara há dois anos, e eu, que reconstruíra minha vida como comerciante, resolvera ficar definitivamente no Novo Mundo.

- Pensei que "forçat" fosse o termo que utilizavam para degredados - comentei, para disfarçar o mal-estar.

- Forçat, oui - acedeu ele. - Mas, acabam sendo todos "esclaves": brancos sentenciados, negros e índios. Nenhum deles está aqui por livre e espontânea vontade!

- Percebo...

E após tomar um gole de vinho, indaguei:

- Então, esse "esclave" vai ser enforcado amanhã?

- Não, Mr. Webster. A execução será na roda.

Fiquei em silêncio. Eu já ouvira falar em execuções na roda, e as descrições eram extremamente bárbaras, para dizer o mínimo. A vítima tinha seus ossos quebrados a golpes de marreta e, caso o carrasco fosse misericordioso, quebrava-lhe o tórax para abreviar a morte.

- E qual foi o crime hediondo que motivou a aplicação de tal pena?

- Assassinato de um oficial do rei - atalhou Monsieur Rossignol. - Contudo, o mais notável, é quem será o executor da pena: um negro liberto, chamado Louis Congo.

Aquilo me pareceu tão bizarro que tive que tomar um trago antes de perguntar:

- Como então, um ex-escravo vai executar um homem branco? Ele é o carrasco oficial ou este é um caso especial?

Não era um caso especial, informou-me Monsieur Rossignol, com gravidade. O negro fora libertado de sua servidão na Companhia das Índias, juntamente com sua companheira, para exercer a função de "l'executeur des hautes oeuvres" da Luisiana. Ou, em outras palavras: carrasco. Que ele houvesse aceitado a incumbência, não era algo assim tão extraordinário. Afinal, a alternativa seria morrer como escravo, da mesma forma que eu tivera que "aceitar" a minha deportação para a América sob risco de sofrer pena mais grave em solo inglês. O notável aí era um negro ser o responsável pela aplicação de sentenças para todos os residentes na colônia, fossem brancos, negros, índios ou mestiços. Qual seria a lógica por trás de tal indicação, perguntei-me, antes de verbalizar minhas dúvidas para o importador. Ele também permaneceu em silêncio, antes de dar-me uma resposta:

- Para um inglês, isto talvez soe estranho... mas, lembre-se: mesmo na França, um carrasco é frequentemente um condenado à morte ou às galés por toda a vida, que troca sua condenação pelo cargo. Eles decerto detém poder enquanto representantes do Estado, mas duvido que algum cidadão livre deseje sua posição. De fato, um dos piores insultos que podem ser dirigidos a um homem, é chamá-lo de "bourreau" - carrasco.

- Então, este Louis Congo deve ser odiado por todos... e visto como um traidor por sua própria gente - comentei. - "Divide et impera".

- Tem razão - reconheceu o importador. - Um dos grandes receios da administração da colônia é uma união entre escravos e índios. Na Luisiana, o governador destaca caçadores de recompensas nativos para perseguir escravos negros fugitivos, e mercenários negros para ir atrás de escravos índios. Que se odeiem entre eles, é uma garantia adicional de segurança para nós, brancos.

- Faz sentido. Mas por que então, usar um negro como executor oficial?

Monsieur Rossignol abriu os braços, como quem se desculpa.

- Talvez... e esta é uma interpretação minha... seja um modo do governador indicar que estamos todos sujeitos à lei última, que é a do Estado. Para a França, não importa a sua raça, origem ou religião: se você quebrar a lei, poderá tornar-se um "esclave" - e sofrer punições como tal.

Pensei cá comigo que no tocante à "petit gens", a ralé colonial, as autoridades francesas estavam adicionando insulto à injúria. Não somente os colonos podiam ser fisicamente castigados pelos crimes eventualmente cometidos, mas também, deveriam receber o castigo pelas mãos de alguém que, socialmente, era inferior a eles. Duvido muito que qualquer pessoa influente experimentasse tal espécie de degradação.

Mas, minha reação protocolar foi erguer a taça de "claret" e exortar:

- Façamos então um brinde à França e à argúcia administrativa de seus administradores!

- Vive le roi! - Respondeu simplesmente o importador, erguendo a sua taça.

- [04-02-2018]