Flash Mob

Antes de entrar no salão da corte em Old Bailey, o juiz Mitchell voltou-se para o meirinho e perguntou:

- Quantos casos temos para hoje?

- Dezesseis, meritíssimo.

- Está na média - comentou o magistrado, ajeitando a peruca branca e adentrando o recinto. Os presentes - jurados, estudantes de direito, funcionários do tribunal, acusados e testemunhas, puseram-se de pé. Voltaram a sentar-se quando o juiz tomou assento no cadeirão central da tribuna, sob o brasão entalhado com a Espada da Justiça.

- Que entre o primeiro acusado - declarou o juiz.

Uma mulher jovem, trajada de modo simples, touca branca na cabeça, foi conduzida ao banco dos réus por dois policiais. Um homem gordo, de sobrecasaca escura, surgiu em seguida e pôs-se ao lado dela. O juiz ergueu as sobrancelhas.

- Este, quem é? - Indagou em voz baixa ao meirinho.

- Tradutor, meritíssimo. A acusada é francesa.

O juiz suspirou.

- Prossiga.

O meirinho fez a leitura da acusação: furto qualificado.

- Como se declara a ré? - Questionou o juiz.

- Non coupable - respondeu a jovem em tom firme.

- Inocente - disse o tradutor.

Em seguida, o denunciante, um homem alto e magro, bem-trajado, calvície acentuada, apresentou as acusações: a ré, Marie Eugénie LeMahieu-Bossuet, natural de Bordéus, França, havia sido contratada como arrumadeira por ele, Reece Brennan. A ré trabalhara cerca de seis meses na residência dele, em Londres, época em que começara a dar pela falta de pequenos objetos domésticos. Finalmente, um relógio de ouro no valor de £25 desaparecera, e o Sr. Brennan achou por bem chamar a polícia. Na busca realizada, o relógio fora encontrado embaixo do colchão, no quarto da acusada. À medida em que as palavras do ex-patrão iam sendo traduzidas, as feições de Marie Eugénie crispavam-se, as mãos agarradas ao parapeito do banco dos réus.

Terminado o depoimento do denunciante, o meirinho chamou duas testemunhas de acusação, ambas criadas de Brennan. Sob juramento, afirmaram que a ré era pessoa de comportamento estranho e que dissera ser católica, embora não frequentasse nenhuma igreja conhecida. Pouco antes do desaparecimento do relógio, comentara que pretendia voltar para a França, mas que não dispunha de dinheiro para a viagem.

- Que a acusada queira dar a sua versão dos fatos - ordenou o juiz.

Com voz trêmula, Marie Eugénie começou a fazer uma exposição, em francês. O tradutor abreviava a fala em frases curtas. Não, ela não roubara nada. As outras criadas eram invejosas, porque ela trabalhava rápido e sabia passar bem. Não era verdade que planejava voltar para a França. Era católica, mas não-praticante.

- Como explica que o relógio roubado tenha sido encontrado debaixo da sua cama? - Inquiriu o juiz.

A ré afirmou que alguém colocara o objeto lá para incriminá-la.

- Quem? - Insistiu o juiz.

Ela não sabia.

- Que o júri queira deliberar sobre o caso - o juiz fez um gesto com a mão em direção ao espaço onde doze homens - metade deles estrangeiros radicados na cidade, em virtude da nacionalidade da acusada - estavam sentados. Os jurados confabularam rapidamente e o veredito surgiu em menos de cinco minutos: culpada. O rosto de Marie Eugénie empalideceu, lábios convertidos numa fina linha vermelha.

- Queiram erguer-se para a leitura da sentença - ordenou o meirinho.

Todos de pé, o juiz foi incisivo:

- Sentencio a ré, Marie Eugénie LeMahieu-Bossuet, à pena de degredo por toda a vida, que deverá ser cumprida em trabalhos forçados na Austrália.

A acusada soltou um grito ao ouvir a sentença. Os policiais a seguraram pelos braços e a arrastaram para fora da corte, enquanto ela se debatia.

- Esse caso até que foi rápido - comentou o juiz Mitchell para o meirinho.

E, consultando seu relógio de bolso, acrescentou:

- Vamos para o próximo.

* * *

A cabeça tosquiada, como punição por desobediência, não aparecia sob a touca branca do uniforme de detenta. O olhar determinado, contudo, não sofrera qualquer alteração no rosto de traços duros.

- Tem um cigarro, Francesa?

Marie Eugénie virou-se para ver quem a chamara pelo apelido. Ellie O'Connell, a Ruiva, uma ex-prostituta de Londres, filha de irlandeses que não ganhavam o suficiente para dar de comer à sua imensa prole. As duas haviam ficado amigas durante a longa travessia marítima da Inglaterra até Hobart, na Tasmânia, onde agora trabalhavam na fábrica feminina, costurando, remendando e lavando roupas para os moradores da cidade vizinha ao estabelecimento prisonal. Marie Eugénie também tivera tempo para aprimorar seu inglês e firmar-se como uma das líderes entre as degredadas.

- Tenho. Você tem fósforos?

Fósforos, teoricamente, não deveriam estar em posse das detentas, mas a Ruiva tinha lá os seus métodos para consegui-los com os guardas. Apoiadas num muro de tijolos vermelhos, fora do prédio principal, tragaram com volúpia seus cigarros feitos à mão.

- O que você está planejando para a visita do governador? - Inquiriu a Ruiva.

- Temos a obrigação de mostrar que não estamos nada satisfeitas... nem com as condições de trabalho, nem com as punições, nem com as humilhações...

- Por falar em humilhações, o reverendo Bedford vai fazer a pregação no domingo.

- Esse merecia um tratamento especial... já que nos acha além de qualquer recuperação, devíamos lhe dar uma resposta à altura da nossa degeneração moral...

- Podíamos agarrá-lo e baixar-lhe as calças, ver se ainda há algo entre as pernas dele - a Ruiva deu uma risadinha.

Marie Eugénie soltou uma baforada antes de responder.

- Não... arriscado demais tentar isso na frente do governador e dos guardas...

E com o cigarro entre os dedos:

- Mas acho que podemos inventar algo nesta mesma linha. Como é que chamam a nossa turma, quando damos uma fugida até a cidade?

- "Flash Mob".

- Pois vamos mostrar o que isso significa, para o reverendo, o governador e seus convidados. Quando Bedford acabar a pregação, nos viramos todas de costas para o altar, levantamos as saias e mostramos as bundas!

A Ruiva começou a rir.

- Parece que vamos fazer jus ao nosso nome!

- "Flash Mob" - repetiu Marie Eugénie, dando uma longa tragada.

* * *

Donna Johnson aproximou-se cautelosamente da multidão ao redor do ringue de boxe em praça pública. Volta e meia, ocorriam lutas de exibição em Brisbane, e ela aproveitava para dar uma espiada, de longe. Seu objetivo declarado era aprender o suficiente da luta para dar uma lição na prima, Alice, quando voltasse para casa em Freshwater. Alice, aquela "lubra", pensou, com raiva.

Estava de pé sob uma árvore, quando percebeu que alguém parara às suas costas. Voltou-se, assustada. Era uma senhora, de seus 70 anos, roupas escuras, um xale sobre os ombros, cabelos brancos penteados num coque severo. No rosto queimado de sol, dois olhos muito vivos e azuis.

- Olá, menina! Gosta de boxe? - Indagou a senhora, com um sorriso cúmplice, um sotaque indefinível. Donna sorriu de volta, aliviada.

- Bom dia, madame... vou dar uma olhada nestes marmanjos se espancando.

- É bom, para variar - comentou ela, parando ao seu lado e ajeitando o xale. - Às vezes eu participava, quando era interna da Fábrica Feminina. Pela diversão.

Donna arregalou os olhos.

- A senhora foi detenta... na Tasmânia?

- Em Hobart, sim - retrucou a mulher serenamente, braços cruzados.

- E lutava boxe?

- A gente organizava umas lutas, vez por outra. Era um modo de resolver diferenças, também.

E piscou um olho para Donna.

- Eu fazia parte de uma gangue... - prosseguiu a senhora. - Chamava-se "Flash Mob". Éramos duronas, encarávamos os guardas, afrontávamos a sociedade...

- Uma gangue! - Exclamou Donna, cobrindo a boca com as mãos.

A senhora riu.

- Como é o seu nome, flor?

- Donna... Donna Johnson. De Freshwater.

- Marie Eugénie LeMahieu-Bossuet, de Bordéus, França. Condenada ao degredo perpétuo pela acusação de ter roubado uma porcaria de um relógio - disse ela, fazendo uma meia vênia.

- Um relógio? - Espantou-se Donna.

- Um relógio. E me mandaram para... bem, para o purgatório. A Tasmânia.

- E nunca mais voltou à França?

Marie Eugénie sorriu.

- Não. Eu me casei... acabei vindo para Brisbane, décadas atrás. Tive filhos, agora netos, enviuvei... não sei se tenho parentes vivos na França. E iria voltar por quê?

- Realmente... - ponderou Donna. E com a curiosidade espicaçando-a:

- Fale-me mais sobre essa gangue... Flash Mob. O que vocês aprontavam?

Marie Eugénie riu.

- Ah, havia um reverendo que detestávamos... Bedford. Uma vez, em que ele ia fazer uma pregação na presença do governador da Tasmânia, combinei com as meninas de fazermos uma grosseria... iríamos nos levantar, virar de costas e mostrar nossos traseiros...

- Que horror! - Sussurrou Donna, abismada.

- Você tem razão! Quando o dia chegou, eu me levantei, ergui as mãos...

- E? - Indagou Donna, tensa.

- Puxei uma salva de palmas para o governador!

Rindo, concluiu:

- Foi épico!

Donna não sabia se expressava alívio ou decepção. Sua indecisão foi interrompida pela chegada de outra idosa, vestida mais garridamente do que Marie Eugénie, cabelos obviamente tingidos de ruivo.

- Demorou, Ruiva... - disse Marie Eugénie à guisa de saudação.

- Algumas décadas, não é? - Respondeu a outra mulher.

As duas trocaram um longo e afetuoso abraço em frente à Donna, que apenas assistiu, sem entender. No ringue, dois homens sem luvas começaram a trocar murros.

- [22-02-2018]