Sem gosto

Na pequena sala de estar de sua confortável casa de classe média, Jannick Metzinger encarou a xícara de porcelana que a esposa, Irmela, acabara de encher com um líquido escuro fumegante.

- O que temos hoje? Café "Horst Wessel"?

Irmela concedeu-lhe um sorriso pálido, sentando-se do outro lado da mesinha onde estava posto o desjejum.

- Não é marrom o suficiente para classificar como "Horst Wessel", não acha?

- Estou vendo a rosa pintada no fundo da xícara - riu Jannick.

Ergueu a xícara e cheirou o líquido.

- Café aqui passou longe... aposto que tem mais chicória torrada e bolotas de carvalho do que outra coisa!

- É o que temos - ponderou Irmela. - Beba antes que esfrie.

Jannick tomou um gole. No rádio ligado na sala ao lado, Zarah Leander começou a cantar uma canção popular de antes da guerra, "Bei mir bist du schön".

- Nossa canção! - Exclamou Jannick, deliciado.

- Pelo amor de Deus, fale baixo - sussurrou Irmela. - Acho que alguém bebeu na rádio, e não foi café...

Jannick pousou a xícara no pires.

- Você tem razão... essa música foi proibida em 1938. É linda, mas virou motivo de piada em todo o Reich.

- E com razão. Escrita por judeus, com tema judeu. Pare de dizer que é a nossa canção! - Ralhou a esposa.

Jannick lançou-lhe um olhar entre magoado e melancólico.

- Nunca vai deixar de ser a nossa canção só porque algum judeu a escreveu, Irmela.

- Já vi gente ser presa pela Gestapo por menos do que isso - retrucou a esposa.

Ficaram em silêncio, ouvindo atentamente a música no rádio. Quando ela terminou e foi seguida por Ilse Werner cantando "Wann wirst Du wieder bei mir sein?", Jannick remexeu-se na cadeira, incomodado.

- O que acha que estão fazendo com os judeus? - Perguntou.

- Como vou saber? - Suspirou Irmela. - Estão levando todos, inclusive aquele alfaiate do outro lado da rua...

Jannick voltou a fitar novamente a xícara sobre a mesa, já quase vazia.

- Devíamos fazer alguma coisa, Irmela...

- Do que está falando? Dos judeus? - Perguntou ela, apreensiva.

- Danem-se os judeus... - resmungou Jannick. - Estou falando do café. Ouvi dizer que estão servindo algo bem melhor para as vítimas de bombardeios... "Zitterkaffee".

Irmela entrelaçou as mãos sobre a mesa.

- "Café do chilique"? Imagino que deva ser bem forte, para acalmar os nervos de quem acabou de perder a casa num bombardeio...

Ao longe, começaram a soar sirenes de ataque aéreo.

- Talvez tenhamos a oportunidade de experimentar isso em primeira mão - concluiu Jannick, olhando para o teto como se pudesse ver os aviões inimigos que se aproximavam, voando muito, muito alto.

- [13-03-2018]