Corina enclausurou-se no quarto de casal. Abriu o oratório encavado na parede; tomou nos braços  uma réplica em bronze do Crucificado e pediu proteção para os homens investidos da missão de combater a onça.

— Meu Deus, meu Deus! Para que matar os bichinhos,  Generoso?  Os leõezinhos rugem por sua presa, e pedem a Deus o seu sustento.
— Conversando com seus amigos invisíveis, minha Flor?
— Estava pedindo proteção divina para os caçadores de onça.
— Então direcionou com atraso sua oração! Acabo de ouvir leõezinhos pedirem a Deus uma presa.
— Você não deixou o filho do Dr. Adilson  embarcar nessa aventura, deixou?
— Ele foi.
— Cruz, credo! Tu és louco? Mandar esses homens se embrenharem na mata atrás de onça em vésperas de finados?
— Dia bom, minha santa! Dia de todos os santos. Não vai faltar nenhum santo na companhia dos vaqueiros.

 Vaqueiro Onofre vai na frente, seguindo uma vereda de gado. Teve vontade de amarrar o cabresto da montaria do Júnior de doutor Adilson, na cabeceira de Xerém. Mas não atrelou. Preferiu passar severas recomendações ao cavaleiro afoito, chegado da cidade:

—Fique no meio dos outros, doutor. A onça se mostra ao da frente, mas ataca é o derradeiro.
— Vamos parar pra verter água. Disse João Velho.
— Faça da cabeça da sela. Tá escuro ainda. E d’agora em diante, ninguém desce dos arreios sem eu mandar.
A intenção de Onofre era surpreender bicho grande na furna da onça. Chegaram ainda escuro. Acenderam fogo na entrada da gruta e ficaram de tocaia.
— Vem  coisa aí, disse João Velho, quase em sussurro.
— É uma raposa! Ninguém se manifeste.
Fizeram absoluto silêncio, mas nada ouviam, senão o crepitar de galhos verdes ardendo ao fogo, e pequenos roedores que saiam da toca, correndo desembestados.

Arribaram.

Cachorro Graudez latiu longe encomendando tatu. Onofre ralhou e seguiram marcha. Mais adiante, o vaqueiro parou. Tirou o chapéu, beijou o escapulário de Nossa Senhora do Carmo e se benzeu.
Os cachorros acuaram bicho no mato.
Agora se espalhem de dois em dois — disse Onofre — O rapaz da cidade fica comigo. João Velho pode seguir sozinho ou fazer uma trempe com mais dois. Todo mundo amontado. É preciso varrer esse sovaco de serra, pisando miúdo, passando pente fino!

Pururuca não conseguia acompanhar os passos da montaria de José Lino. E atrasou-se. O companheiro  perdeu a paciência. Tinha diminuído a batida para o outro alcançar a marcha... ‘Atraso de vida, esse sujeito!’

— Chegue a espora no vazio do animal, vaso ordinário!  Nesse passo, não vou alcançar  nem o  rastro da onça.
— Cavalo fi’duma égua...
 —O cavalo é bom. O cavaleiro não presta. Só mesmo Pururuca pra reclamar de Torresmo. Na batida, não tem cavalo melhor.
— Nasci pra vaqueiro não!
— Se não acertar o passo, largo você pra onça comer...

Largar pra onça comer foi o mesmo que dar de pau na cabeça de Pururuca do Curral de Dentro. E lhe fez lembrar, quando procurou serviços nas carvoeiras de Tremedal. Conseguiu uma vaga como formiga, naquele formigueiro de fumaça e fogo. Mesmo de dia só se enxergava o branco dos olhos. Aquilo não era gente. Era tição apagado que andava... Os mortos, matados por qualquer desavença, iam para o forno. Não deixavam rastro, nem cinzas. O patrão pagava só  com mantimento, a conta comprar mantimento pra fazer a boia. Fora isso, dinheiro, ninguém via. O jeito de sair dali com alguns trocados,   era pegar araponga na mata e vender em Salinas. Mas os bichos se afastaram por causa do eucalipto. Precisava ir longe para encontrar uma araponga, um veado, ou qualquer caça do mato. Nem passarinho, de porte nenhum, se vê em mata de eucalipto. Pois foi naquele segundo domingo de novembro, que Pururuca apanhou sua gaiola com uma fêmea de araponga  e vazou o eucalipto. Muitas léguas depois da carvoeira, armou o alçapão e ficou de tocai, reparado,  pra ver se a chama atraia algum macho. Esperar por uma oportunidade de captura, é como pescar: não se sabe a hora que o peixe vai morder a isca. Distraiu-se vagando, pensando na mulher que deixara em Montes Claros, de favor, na casa do pai dele.

Depois de horas de espera, a chama  mostrou-se  agitada. Pulava desesperadamente, de um para outro lado da gaiola. E quando ele reparou direito. Sentada sobre as patas traseira, uma onça preta, de cócoras, humilde,  feito cachorro pidão, espiava  a araponga pular. Também de cócoras, ele  estava. Levantou-se. Deu três pulos de tiziu: Subia e gritava. Descia. Subia e  gritava... No último grito, a onça abanou o rabo e saiu devagar, como se dissesse: ‘Tive medo não! Tô de barriga cheia.’   Enquanto divagava em suas lembranças, Pururuca atrasou o passo mais ainda, e ficou distante do parceiro. José Lino gritou:

— Roseta o animal, cabra mole!
—Tenho coragem de furar o bichinho, não!
— Cadê a arma?
— Caiu na voçoroca.
— Por que não pegou?
— Dava não!
— Caiu em qual delas?
— Na voçoroca do  meio, no vale grande que fica entre duas serras. Tem tudo que é bicho lá dentro.
— Vamos voltar. A onça deve ter sentido os cachorros e se escondeu lá.
— Volto não! Lá, volto não! Já vi onça olhando pra mim. Quero ver mais não!

Os mais antigos contam que já morreu muito animal lá dentro. Mas animal não conta. Gente conta. Três vaqueiros sumiram. Devem estar lá. Tem osso de tudo quanto é vivente. Se escapar da queda com vida. Não sai. Sai não! Fundo demais! Se cair na voçoroca, morre lá. Sai mais não.
— Sê besta, Pururuca! Caindo com vida,  morro não! Tem água e caça. É só fazer fogo.
—Vai viver lá o resto da vida? Sai não! Morre de saudade. Não nem querendo... Se cair uma onça e escapar, tem que negociar espaço com ela. E se a onça  parir  tem que deixar a cria vingar. Pode comprar briga não!
 — Para de pensar besteira! Como a onça vai apanhar cria sozinha na voçoroca!
—Sei não, pode cair prenhe. Mexo com onça não  seu Jose Lino!
—  Eta homem frouxo. Sai de minha frente, estrupício.
***
Adalberto Lima, trecho de "Estrada sem fim..."