1. 3. A chuva lá fora
Mãe e filha ficaram olhando com ternura para a criança que dormia serenamente, deitada agora em uma esteira em um canto onde não chovia, pois a chuva ainda não parara lá fora, e as goteiras tinham aumentado na casinha. Enquanto as duas olhavam podiam perceber pequenas mudanças na criança. Sim, ele crescia mais um pouco enquanto dormia.
-Minha filha, vamos dar uma volta. Eu sei que aconteceram muitas mudanças aqui, mas todos te esperam lá fora. Querem saber da sua criança, estão preocupados pois não ouviram o choro. E você também precisa ver a chuva. Afinal faz tempo que não chove, e você nunca viu, não é?
Ela se sentiu estranha ao sair. Se sentia forte, apesar de ter acabado de passar pelo doloroso trabalho de parto, se sentia revigorada. Como se ao alimentar seu misterioso e especial filho, ela tivesse alimentado a si mesma.
Ao passar pela cerca de madeira semidestruída de sua casinha, notou que pouca coisa tinha mudado lá fora. Até o que ela podia perceber, a única mudança era a chuva. Não que isso fosse ruim, mas depois de tudo o que tinha visto sem sair de casa, esperava ver algo realmente extraordinário. Mas que algo estava agitando a pequena multidão, isso estava. As Mães Encantadas raramente saiam, mas olhando ao redor ela podia ver várias delas, pálidas presenças dançando entre as pessoas e as possas d’água. A cena poderia ser mais alegre, mas, apesar da música e dos sorrisos, faltavam as crianças. Sempre faltariam as crianças, pois há muito tempo a terra se tornara imprópria para crescer, fazendo as crianças existirem apenas por alguns instantes, se quisessem sobreviver.
Ela ficou um tempo observando a multidão, sem ser vista. E pode ouvir a canção que a todos embalava. Uma canção antiga, quase esquecida. Uma canção que há muito não se ouvia naquela terra:
“Veja a nuvem escura
Que vem chegando
Pra acabar com a secura
A chuva tá começando.
 
A chuva devagar vai caindo
E a terra vai molhando
Toda a gente tá sorrindo
E a esperança renovando.
 
Ao longe a trovoada
Juntos como irmãos
Pela rua molhada
Todos dando as mãos.
 
Enquanto a chuva cair
Vamos todos cantar
Vamos todos sorrir
Vamos todos sonhar.
 
Para a alegria de toda gente
A chuva vai caindo
A terra espera a semente
E o futuro está sorrindo.
 
As folhas já brotando
A terra fica macia
Continua o chão molhando
Renovando a alegria.
 
Ao longe a trovoada
Juntos como irmãos
Pela rua molhada
Todos dando as mãos
 
Enquanto a chuva cair
Vamos todos cantar
Vamos todos sorrir
Vamos todos sonhar.”
 
Apesar da alegria aparente, a melancolia estava presente, e podia ser sentida. Por isso ela era aguardada ansiosamente. Fazia tempo que ninguém nascia. Todos queriam ver a criança antes que ela crescesse. Some isso a chuva e podemos ter certeza de que a alegria, apesar da melancolia, podia ser vista e sentida em todos, mesmo com todas as adversidades e a vida dura que levavam ali. Não demorou para ser vista, e ouvir alguém gritando na multidão:
-Vejam, ela saiu de casa! E já deu a luz!
Em poucos instantes ela já estava cercada de rostos ansiosos. Todos queriam saber da criança, queriam também vê-lo, mesmo que há essa hora já tivesse crescido um pouquinho ou estivesse dormindo.Ela estranhou que a primeira pergunta não foi sobre ela ou a criança, foi sobre a casa. Todos queriam saber por que a casa dela estava diferente. Tinham visto a luz dourada escapando pelas frestas e também pela janela, mas o que mais os surpreendeu foi a ave. Viram um pássaro cinza e triste entrando lá. Mas o pássaro que saiu era vermelho, lindo, e cantava uma melodia alegre, que enchia o ar e aquecia os corações. Mesmo agora que o pássaro já tinha partido ainda se podia sentir a canção. Era como se ela tivesse enchido tudo ao redor.
 Nem mesmo as Mães Encantadas mais antigas sabiam que pássaro era aquele, afinal um pássaro, ali, era até mais raro que uma criança. Quando a ave voou e sumiu, olharam de novo para a casa. E se surpreenderam, pois o casebre era o mesmo, mas parecia que tinha sido renovado. Não que as imperfeições tivessem desaparecido, as frestas e buracos ainda estavam lá. Mas algo tinha mudado, a casinha se destacava, as cores dela eram vivas, de material novo. Não como tudo ao redor, que parecia desgastado e triste pelos longos e dolorosos anos de aridez e sofrimento. Até a terra e as casas padeciam dos mesmo sofrimentos das pessoas. E a casa dela parecia que estava livre agora! Como se a chuva tivesse lavado, além da poeira, os anos de uso daquela casa. Mas só daquela.
Foi isso o que ela reparou agora, olhando ao redor. Sua pequena casinha se destacava. Tudo em sua volta estava como sempre fora. As mesmas tonalidades amareladas e encardidas nas paredes, a palha ressequida nos telhados, as cercas caídas e de madeiras descascadas, que talvez tivessem sido brancas um dia, mas há muito tempo. Somente sua casa mudara, e no seu íntimo ela sorriu, porque sabia a resposta. Seu filho.
Não demorou muito e começaram a perguntar sobre ela, queriam saber como ela estava bem, tendo acabado de dar a luz. Queriam também explicações.
- Bem – ela disse, - temo não saber mais que vocês! O que aconteceu foi que pela manhã estava sentindo muitas dores, sabia que meu filho estava para nascer... Assim ela contou-lhes tudo que tinha acontecido até então, e contava com um público cada vez mais atento e curioso.
Ao terminar sua narrativa, uma voz feminina se fez ouvir:
- Vejam! Folhas na arvore centenária!
Todos os olhares se voltaram. A árvore era um pouco alta, de modo que todos tinham que olhar para cima ao contemplá-la, recebendo com alegria as gotas da chuva que ainda caía. Todos puderam ver pequenas folhas que brotavam nos galhos mais altos.
Todos estavam alegres e admirados. Pequenas folhas. Pequenas e belas. Mas era um sinal de vida nova. Folhas verdes, uma nova esperança que surgia para todos ali. Lágrimas de alegria vieram se juntar com as gotas da chuva e molhar o sorriso daquelas pessoas sofridas. Uma trovoada se fez ouvir novamente e a chuva se intensificou. Mas nem isso fez com que eles saíssem dali. A água já escorria pelos dois lados da rua. O vento balançava portões esquecidos abertos e batia janelas que ninguém mais se lembrava de fechar. Se houvessem crianças, elas se aconchegariam as mães, e ficariam das janelas olhando a brincadeira da chuva. Mas é claro que não havia crianças. O que dava ares de melancolia e nostalgia aquela cena.
Parece que, aos poucos, todos foram se dando conta que, apesar da felicidade, faltava algo. E assim silenciosamente, todos foram retornando as suas casas, cheios de sua felicidade, molhados, certos de que algo tinha mudado e estranhamente vazios. Ninguém falou com ninguém, mas parece que todos se lembraram que suas casas não estavam preparadas para chuva, e rapidamente a rua ficou vazia. Cheia apenas de água, e, pela primeira vez em muito tempo, cheia de marcas de pegadas na lama. Apenas as Mães Encantadas permaneceram em volta da árvore centenária, olhando ainda para cima, no lugar em que estavam as folhinhas de esperança.
- Minha filha, acho bom você ir também, não vai querer perder as poucas horas que nosso pequenino vai ser criança!
- Tem razão mamãe, já vou! Tanta coisa aconteceu! É estranho pensar que ainda é tão cedo! O que mais pode acontecer hoje?
Ao dizer isso virou as costas e se encaminhou para sua casinha. Se tivesse olhado mais uma vez, teria percebido um sorriso triste aparecer rapidamente no rosto de sua Mãe Encantada.
“É minha filha,” pensou, “é verdade, o dia ainda mal começou, e temo que as mudanças e acontecimentos especiais e estranhos também não.”.
Quando ouviu o portão se fechando atrás de si, ela caminhou para se juntar com as outras Encantadas ao redor da árvore centenária. Elas se entreolharam, como para conferir se estavam todas ali. Deram um aceno positivo e seguiram juntas, pálidas presenças, para uma das casinhas mais deterioradas pelo tempo, que ficava no final da estrada, no fundo do vilarejo. E, sem abrir nem uma porta, entraram todas.
...
Chuva. Era tudo que o Espelho Que Tudo Mostra queria mostrar. Sabia que estava olhando o lugar certo. A chuva marcava o nascimento do menino, como há cem anos. A criança tinha nascido. E ele não podia vê-la. E nem veria. A não ser que seus mensageiros encontrassem o lugar. Mas aqueles idiotas haviam passado direto.
Esperar. Teria que esperar a criança partir. Quanto tempo demoraria?
Enquanto isso a chuva caia. Como que lavando os males e regando a esperança.
A tempestade em seus olhos se intensificava. O sorriso frio permanecia em seus lábios.