O CONSERTADOR DE TV

Era meados de 1970, o ano do tri campeonato mundial de futebol.

A alegria era contagiante em todo Brasil e o seu povo se delirava com o patriótico momento ao som da música "PRA FRENTE BRASIL" que muito enaltecia a "nação canarinho”, e nela um trecho que assim dizia:

Noventa milhões em ação /

Pra frente, Brasil /

Do meu coração.

Eu era, sem dúvida, um irrelevante fragmento dessa colorida euforia em terras cariocas; um recém-chegado das caatingas sertanejas em busca de melhores dias.

Lembro-me, com exatidão, que a vida não estava, assim, tão risonha para mim que perambulava desempregado; sorria desdentado e dependia de dois irmãos que não mediam esforços para me ajudar.

Se bem me lembro, era o dia do último jogo da copa do mundo, onde Brasil e Itália disputariam o título de vencedor. Foi também um dia eufórico para um dos meus irmãos que acabava de ser aprovado no vestibular de odontologia da Universidade Federal Fluminense. Nesse dia eu estava na casa do meu outro irmão, um fuzileiro naval que, acredito, não necessitava fazer nenhum tipo de “bico” para complementar seu soldo, mas, mesmo assim ele resolveu dar uma estudadinha por correspondência em alguns livros de eletrônica e se auto-intitular técnico de rádio e de tv.

A notícia de que no bairro havia um consertador de televisão se espalhou rapidamente na região, pois uma placa com a tal indicação permanecia afixada na fachada de sua moradia e isso lhe afluía alguns minguados fregueses. E foi exatamente nesse clima de grande euforia carioca que, naquele festivo dia, lhe apareceu um indivíduo e contrata meu irmão para consertar seu aparelho de televisão. Só que o referido cliente lhe exigiu urgência urgentíssima, alegando não querer perder o jogo da seleção brasileira pelo seu aparelho de televisão.

– Tá legal cara, tá legal! Lá para as duas da tarde estarei lá para consertar sua tv e lhe garanto que vai dar tempo. Fica frio! Com certeza você verá o jogo.

Contentemente o meu irmão selou verbalmente aquele contrato com o dito freguês e depois virou-se para mim friccionando suas mãos enquanto me dizia:

– Mano, que legal, hoje vai chover um bom dinheirinho!

Os ponteiros do relógio corriam afobados em direção às quatorze horas - hora do referido compromisso - e num piscar de olhos lá estávamos nós subindo os degraus do prédio rumo ao apartamento do dito sujeito. Bem rápido atingimos o terceiro andar e lá o encontramos sentado no último degrau da escada bebendo cachaça no gargalo da garrafa de 51 e reclamava dizendo estar pregado ali por mais de hora e meia, e que tudo isso era só por nossa causa.

Notei que o cara cantava repetitivamente a tal música alusiva à "seleção canarinho", sem, sequer, responder ao nosso cordial boa tarde, mas, mesmo assim, nos foi ordenando:

– Entrem e só saiam daí com a minha tv funcionando, tá legal? - e voltou a cantar e a beber no gargalo da 51.

Atendemos e adentramos encabulados. Algo iria acontecer, pois o sujeito, apesar de cantante, se revelava inquieto e trôpego.

Meu irmão desparafusou e desmontou o aparelho, e pôs-se a mexê-lo como se o entendesse muito bem. Mexe daqui, mexe dali, mexe acolá e de repente ele encostou a chave de fendas onde não deveria, causando um curto circuito ao som de uma violenta explosão que balançou o andar do prédio. Da velha tv saiu uma fumaça negra que invadiu todo ambiente e, enquanto isso, nós pulamos para a parede. Nesse momento o sujeito correu da escada e nos encarou com os olhos etilicamente rubros e esbugalhados. O indivíduo ficou por um instante a nos observar como a admirar a estúpida cena. Ficou ali paralisado com um semblante atônito e abestalhado, mas quando sua “ficha caiu” ele sacou de uma faca peixeira e nos encurralou no apartamento, gritando com histeria e palavrões, assim dizendo:

- Vocês só sairão daqui se essa “p” funcionar, entenderam?

Lá fora era tudo alegria.

O Rio de Janeiro estava enlouquecido com a aproximação do início do jogo e a todo instante só se ouvia estampidos, gritos e buzinaços. Era um barulho de ensurdecer.

Enquanto isso:

– Escute aqui moço! Por favor moço, me escute! – dizia meu irmão, concomitante, tentando desviar a eloquente atenção do sujeito que xingando e esmurrando as paredes não nos dava trela, e nesse clima de perfeita discórdia eles ficaram trocando farpas por vários minutos: um com a faca em punho mirando-a para nós e para a velha tv que muito enfumaçava, enquanto que nós só procurávamos um jeito seguro e prático de cair fora dali.

– Calma moço, calma! - Era somente isso o que eu sabia dizer. E ele, virando-se para o meu irmão, alcoolicamente bradava:

– Vo-vovocê não é um um eleletroténico? Você não se diz uuum ténico? Então arrume logo essa (p) dessa tv porque eu quero ver o Brasil jogar, entendeu? - Isso aos gritos e berros, et cétera e tal. E ainda acrescentava: – todo mundo já está vendo a (p) desse jogo começando, menos eu. Arrume logo o (c) dessa tevê. Você me ouviu?

E meu irmão quase se borrando, retrucava:

– Moço, eu sou apenas um quebra-galho. Fica frio! – dizia ele tentando acalmar o sujeito.

Aquela cena foi só de terror e de medo.

Num instante de descuido e desatenção nós escapulimos pelos degraus abaixo, menos ele, que estava bêbado demais para isso.

Amedrontados corremos pela rua e ao chegamos em casa ouvimos o bombear de fogos de artifício e a contagiante explosão da cidade do Rio de Janeiro com o grito de:

Gol, gol, gol, goooooool do Brasil, goooooool do Brasil. Pelé, Pelé.

Rede Globo. Plimplim.

E ainda ficamos a lamentar pelo fanatismo do tal carioca que não pode ver nem festejar o fantástico golaço.

– Coitado!

José Pedreira da Cruz
Enviado por José Pedreira da Cruz em 05/06/2018
Reeditado em 19/01/2019
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