Aguente firme

Foi logo depois do jantar. Hoshiko puxou um papel dobrado do cinturão de seda laranja que prendia o seu kimono branco, estampado com flores de cerejeira, e estendeu-o para mim em silêncio. Antes de abrir, eu já sabia o que era.

- Onde achou?

- Caiu no nosso quintal, hoje de manhã. Você já havia saído para trabalhar.

- Alguém viu?

- Não. Eu estava varrendo as folhas, e joguei tudo no lixo. Quando escureceu, peguei de volta.

Abri cuidadosamente o papel. Era um folheto de propaganda norte-americana, informando sobre os próximos ataques ao Japão. Em uma das faces, havia uma foto de bombardeiros B-29 despejando sua carga de bombas, e uma relação das cidades que seriam atingidas.

- Não consigo entender a lógica dos americanos - comentou Hoshiko. - Eles nos avisam que vão nos bombardear... não tem receio de que derrubemos seus aviões?

- Eles têm superioridade aérea - avaliei. - Não temos mais como combatê-los no ar, sobrevoam nosso território a hora que querem e agora até podem se dar ao luxo de jogarem propaganda, em vez de bombas... acho que é mais uma demonstração do seu poderio do que algum tipo de preocupação conosco, que estamos aqui embaixo.

- Mas eles cumprem o prometido - insistiu Hoshiko. - Sempre que os folhetos ou a rádio KSAI informam que uma cidade vai ser bombardeada, isso acontece!

- Sim... você tem razão - admiti. - Mas, desta vez, não há com o que nos preocuparmos. Hiroshima não está na lista.

- Você sabe o que está escrito no verso do folheto, não sabe?

Eu sabia, e recitei de cor:

- "Não podemos prometer que somente estas cidades serão atacadas". Bom, o que podemos fazer?

- Vamos sair de Hiroshima... eles só bombardeiam cidades grandes. Podemos ficar um tempo com minha mãe, em Mihara. Ela disse que podíamos ir a qualquer hora.

E, vendo que eu não parecia convencido, levou a mão ao ventre.

- Pelo bebê.

Inclinei-me e beijei-a.

- Está bem - concordei. - Amanhã bem cedo, vou te colocar no trem para Mihara.

- E você?

- Eu tenho que trabalhar - suspirei. - Mas prometo que vou à noite pra lá. Vá fazer as malas...

Ela me abraçou, aliviada.

- Agora, queime isso, antes que a Kenpeitai entre aqui e nos prenda por traição... - ponderei, devolvendo-lhe o papel dobrado.

Hoshiko abriu a portinhola do fogareiro a carvão e atirou o folheto lá dentro. Ficou observando-o até que queimasse por completo e depois, revirou as cinzas com um atiçador de ferro.

- Pronto. Não sobrou nada - declarou, com um sorriso.

- [10-06-2018]