Cuidado com o que fala
Estávamos eu e Hoshiko à noite em casa, sentados em nossos zaisus, à frente de uma kotatsu laqueada, tomando chá e discutindo os assuntos do dia. Particularmente, a primeira página do jornal local de Hiroshima, o "Chugoku Shimbun".
- Eles usaram uma notícia do "Asahi Shimbun" de Tóquio - comentei. - E não sei se a interpretaram corretamente.
- Os Aliados exigem que nos rendamos, certo? - Ponderou ela.
- Sim.
- De forma incondicional?
- Sim.
- Sob pena de pronta e total destruição?
- Sim. Foram esses os termos que usaram.
- E, face à esta ameaça, de pronta e total destruição, nós respondemos com "mokusatsu"? Se os americanos entenderem japonês, não acha que poderão interpretar isso como "vamos ignorar"?
- Creio que o sentido do comunicado do governo foi "sem comentários" - avaliei. - Ainda estão analisando o que podem fazer perante a tal Declaração de Potsdam.
- Mas se estão avaliando, porque o primeiro-ministro não disse isso?
- Provavelmente para não desagradar os militares... ou o Imperador.
- Acredita que temos alguma chance se continuarmos a lutar?
- Os militares creem que sim. O governo nos diz que sim. Parece ser esse o desejo do Imperador: que lutemos até o fim.
- Vamos continuar lutando até que o Japão seja transformado num montão de escombros fumegantes? - Insistiu ela, com veemência.
Abaixei a cabeça, sem coragem de encará-la. Ela tocou no meu braço, e disse, suavemente:
- Estou grávida.
Ergui os olhos.
- Quando soube? - Indaguei.
- Hoje, pela manhã.
Segurei-a pelos ombros. Depois, a abracei. Ficamos um tempo em silêncio, nos braços um do outro, até que eu dissesse:
- Essa criança merece uma chance de crescer e ser feliz. Terminada a guerra, talvez devamos sair do Japão e partir, como milhares de moradores de Hiroshima fizeram antes de nós.
- Partir... para onde? - Questionou ela, sem me soltar.
- Há muitos japoneses residindo hoje no Brasil. É uma terra distante, mas ao menos a guerra não chegou até lá.
- Você é um homem instruído, não um camponês - avaliou ela. - O que iria fazer no Brasil?
Comecei a rir, baixinho.
- Quem sabe, dar aulas de japonês para brasileiros...
Hoshiko sorriu e apenas sussurrou:
- Mokusatsu.
- [05-07-2018]