No palácio da memória

E ao deparar-se casualmente com seu colega mandarim Zhan Shi, na saída do Templo do Sol, fora das muralhas de Pequim, Jiang Lin aproveitou para queixar-se do estrangeiro que caíra nas graças do imperador.

- Esse tal Li Madou... não parece razoável que tenha tantos privilégios sem ao menos ocupar um cargo oficial!

- Não o conheço, mas ouvi falar bem dele - ponderou Zhan Shi. - Parece ser um homem de extrema erudição, capaz não somente de falar e escrever em chinês, o que é notável para um estrangeiro, mas também de discorrer sobre as obras clássicas de Confúcio.

- Ah! Então o defende! - Exclamou Jiang Lin agastado.

- Defendo o fato de ter assimilado a nossa cultura e não tentar impor a dele - prosseguiu Zhan Shi. - E Li Madou nos trouxe conhecimentos admiráveis... tive a oportunidade de ver uma réplica do mapa-múndi desenvolvido por ele. É uma obra verdadeiramente admirável!

- Mas Li Madou se posiciona contra a prostituição! - Arguiu Jiang Lin com veemência. - As pessoas têm que sobreviver de alguma forma, e negar esse direito às garotas de, digamos, Yangzhou, seria condená-las à morte por inanição.

- Curioso que tenha citado Yangzhou... - Zhan Shi começou a brincar com o leque fechado que trazia nas mãos. - Soube que você tinha um negócio de "produção de mulheres" na cidade...

- Eu ajudo algumas famílias pobres - tergiversou Jian Lin.

- Famílias com muitas garotas, suponho - Zhan Shi tocou os lábios com o leque, como se quisesse impedir-se de falar algo comprometedor.

- Que as vendem legalmente para que seus irmãos tenham o que comer - retrucou Jian Lin. - Que melhor demonstração de amor filial e obediência aos pais uma filha poderia dar, do que aceitar ser vendida para a prostituição?

- Amor filial e obediência são valores confucianos, - reconheceu Zhan Shi - e eu reconheço que uma garota vendida nestas circunstâncias, pode até encarar a mudança como uma oportunidade real de melhorar de vida - se ela for esperta o suficiente. Por outro lado, também tenho muito claro em minha mente que Confúcio também condenou as famílias de baixa renda que vendiam seus filhos.

- Tudo aumentou de preço... - redarguiu Jian Lin. - Comida, roupas... é uma falta de sorte que os pobres tenham que vender suas filhas, mas imagine o que seria deles se não existissem homens como eu, para comprá-las? Quer que essas pessoas morram de fome, Zhan Shi?

O interpelado abriu o leque, de seda e varetas de bambu, decorado com uma bucólica paisagem montanhesa.

- Não irei tão longe a ponto de propor a abolição do comércio de mulheres... algumas delas podem acabar por se tornar cortesãs - comentou em tom mordaz. - E cortesãs são hoje muito bem vistas pela sociedade... talvez tenham até se tornado referências morais, digamos.

- Parece que chegamos a um denominador comum - Jian Lin pareceu ficar satisfeito com a conclusão.

- Mas sobre esse estrangeiro, Li Madou, é bom que você não cometa o erro de Hou Pu. Hou Pu questionou justamente o fato dele não ter cargo na administração imperial, e mesmo assim gozar de todos os privilégios de um mandarim...

- E o que aconteceu? - Inquiriu Jian Lin.

Zan Shi abriu um sorriso.

- Li Madou ameaçou ir embora de Pequim... e todos sabem como o imperador estima a presença dele na cidade.

E, fechando o leque, acrescentou:

- Faça como Hou Pu, Jian Li: guarde suas queixas em alguma caixa empoeirada do seu palácio da memória. Depois, jogue a chave fora, e esqueça em que quarto a deixou.

E com uma vênia, seguiu seu caminho.

- [16-07-2018]