Faça como lhe foi ordenado

Puabi, grande sacerdotisa, recebeu Amennatakaruti, visitante do distante Egito, na sala de audiências do templo de Nana em Ur, Suméria. Ainda bela nos seus presumidos 40 e poucos anos de idade, a sacerdotisa pareceu ao egípcio mais debilitada do que nas visitas anteriores.

- Sim, de fato, meu bom amigo, não ando me sentindo muito bem ultimamente - declarou Puabi com voz cansada.

- Mas o que dizem seus médicos? - Indagou Amennatakaruti preocupado.

- Médicos sempre querem atribuir doenças a pecados reais ou imaginados, cometidos contra os deuses - atalhou a sacerdotisa, ao mesmo tempo em que chamava uma serva e lhe ordenava que servisse cerveja. - Como eu já sou uma grande sacerdotisa, é mais prático orar diretamente à deusa Gula e seu filho Ninazu, pela minha recuperação...

Sentindo o clima pesado, o convidado resolveu mudar de assunto ao receber a taça das mãos da serva.

- Francamente, vou sentir falta desta cerveja quando voltar para o Egito - comentou, ao provar o líquido escuro e amargo.

- Mas como... quando voltar para o Egito? - Questionou Puabi erguendo as sobrancelhas. - Pensei que fosse ficar conosco em Ur... indefinidamente.

- Ah, eu adoro tudo aqui... - declarou Amennatakaruti diplomaticamente. - Mas depois de dois verões na Suméria, preciso voltar aos meus alunos em Waset e lhes contar das maravilhas que vi no seu reino! Não é justo que não possam ouvir falar sobre a grandeza de Ur em primeira pessoa.

Puabi parecia divagar, olhos perdidos na distância.

- Bem... mas você pode descrever todas as nossas maravilhas em primeira pessoa. Escreva algumas tabuinhas contando as suas aventuras... ou um papiro, se prefere, como fazem lá no Egito.

E, encarando o visitante nos olhos:

- Eu não gostaria que você se fosse; vou sentir falta das suas histórias.

Amennatakaruti tomou um longo gole de cerveja antes de responder:

- Não precisa ser um adeus definitivo, grande sacerdotisa. Eu irei e volto... assim que puder.

Puabi também tomou um longo gole de cerveja antes de retrucar com tristeza:

- Acho que o meu tempo está se esgotando, bom amigo.

* * *

A noite já havia caído sobre a cidade de Ur. No bairro dos mercadores, onde havia alugado uma casa, Amennatakaruti preparava-se para a refeição da noite quando bateram à porta da frente. Um escravo foi atender e voltou pouco depois com uma tabuleta de argila nas mãos.

- É um convite para o velório da grande sacerdotisa Puabi, meu senhor - informou.

- Por Montu! - Exclamou Amennatakaruti consternado, segurando a tabuleta e tentando inutilmente entender o que estava escrito em caracteres cuneiformes. - Eu estive com ela há poucos dias e não poderia esperar tão trágico desfecho num prazo tão curto.

- O senhor está lendo de cabeça para baixo - alertou o escravo.

Amennatakaruti virou a tabuleta na posição correta e continuou sem entender nada.

- Mais fácil seria se escrevessem em hieróglifos - resmungou. E só então atinou que o escravo entendia aquela algaravia.

- Você consegue ler isso?

- Naturalmente, senhor - declarou o interpelado com tranquilidade. - Sou escravo, mas sou letrado.

- Ah, claro... - retrucou Amennatakaruti, testa franzida. - Então me faça um favor: leia!

O escravo pegou a tabuleta e, correndo o dedo pelas linhas, soletrou vagarosamente:

- Sua majestade... o rei Meskiag-Nanna... convida para o... velório da grande sacerdotisa... Puabi... a ser realizado no... templo de Nana... amanhã a partir... do por do sol... favor comparecer... em roupa de gala... será servido um... banquete... aos convidados.

- "Roupa de gala"? - Indagou surpreso Amennatakaruti.

- É o que diz aqui, senhor - afirmou o escravo. - Mas permite que lhe dê uma sugestão?

- Claro, vá em frente.

- Fuja da cidade o quanto antes. Hoje à noite, se possível.

- Fugir? - Amennatakaruti arregalou os olhos.

- Se preza a sua vida, senhor - completou impassível o escravo.

* * *

Meses depois, Amennatakaruti encontrou seu amigo Psusennes para uma cerveja às margens do Nilo, em Waset.

- Quando chegou à cidade? - Indagou Psusennes, após terem se instalado com um jarro e dois copos de cerâmica num barranco, de onde podiam ver a movimentação às margens do rio.

- Semana passada... tive que sair de Ur por terra, para despistar. Consegui lugar numa caravana que estava indo para o reino de Ebla, e dali pude pegar um barco para Rhakotis, no delta do Nilo. Foram muitas aventuras, e se consegui sair com vida de Ur, devo isso ao meu escravo Namta, que me acompanhou na viagem.

- Assombroso! E onde está ele?

- Dei-lhe alforria pelos bons serviços prestados... e lhe arranjei um emprego como tradutor, nos depósitos do faraó. Ele consegue ler em caracteres cuneiformes melhor do que eu!

- Você consegue ler em cuneiformes? - Questionou Psusennes.

- É bem complicado - admitiu Amennatakaruti, enchendo os dois copos com um líquido amarelo-claro e borbulhante. Entregou um ao amigo e ergueu o outro.

- Um brinde à deusa! - Exclamou.

- À Ninkasi! - Retrucou Psusennes.

Derramaram um pouco da cerveja no chão e beberam o restante de um gole. Amennatakaruti limpou a boca com as costas da mão.

- Saudades que eu estava dessa cerveja... a produzida em Ur é bem amarga!

- E afinal... porque você fugiu de lá? - Indagou Psusennes após um curto silêncio.

- Você já deve ter ouvido falar da história... - disse lentamente Amennatakaruti. - Centenas de anos atrás, aqui no Egito, quando um faraó ou grande dignitário morria, era costume que fosse acompanhado na morte por alguns servos, soldados, músicos, poetas... para servi-lo no além-túmulo.

- Sim, eu ouvi falar... - admitiu Psusennes, pensativo. - Mas, como disse, já não fazemos mais essa espécie de coisas. Estatuetas de servos nos túmulos, substituíram esses sacrifícios humanos...

Parou de falar e encarou o amigo.

- Em Ur eles continuam a fazer isso?

- Sim - respondeu Amennatakaruti gravemente, enchendo novamente os copos de cerveja. - E acontece que a grande sacerdotisa Puabi me considerava um excelente contador de histórias...

Bebeu um gole de cerveja, antes de acrescentar:

- Mas, francamente, prefiro mesmo contá-las aos vivos.

- [30-09-2018]