Confie em mim

- Você já pensou como poderíamos fazer do mundo um lugar melhor?

Charlotte Bingenheim parou a leitura do Livro I das "Metamorfoses" de Ovídio, e olhou surpresa para a colega de escola, sentada em frente dela à mesa da sala de estar da família Bingenheim, em Berlim. Clara Kronenberg, cabelos louro-mel que lhe caíam sobre o busto em longas tranças, estava sorrindo, lápis em riste.

- Pensei, Clara - respondeu Charlotte, pousando o livro na mesa. - O problema, creio, é no método empregado para atingir tal fim.

Clara baixou o lápis.

- Eu fui ouvi-lo. Ele tem propostas para chegarmos a isto... para resgatar a grandeza da Alemanha!

Charlotte colocou as palmas das mãos sobre o livro aberto à sua frente.

- Herr Hitler, de novo? - Indagou suavemente.

- Ele é maravilhoso, Charlotte! Por que não aceita o meu convite e vamos assistir uma de suas aparições públicas? Os discursos dele... são tão verdadeiros!

- Até um pouco demais, para o meu gosto - ponderou Charlotte. - E os seus pais? O que estão achando desse seu amor pelo novo chanceler?

- Meus pais são uns esnobes... jamais poderiam entender alguém que fala para o povo alemão, como Hitler! - Declarou Clara, muito séria.

- Entendo o que quer dizer - comentou Charlotte. Havia se lembrado de um letreiro afixado ao lado da porta dos Kronenberg, o qual alertava em elegantes letras góticas: "PEDINTES E MASCATES NÃO SÃO BEM-VINDOS".

- Eu sei que você me entende, Charlotte! - Exclamou Clara. - Por isso somos tão amigas... mas justamente por isso não compreendo porque resiste tanto em aceitar a mensagem de Hitler!

Charlotte olhou para o teto por alguns segundos.

- Será que isso tem alguma coisa a ver com o fato de eu ser uma Mischling?

Clara a encarou com surpresa.

- Você tem... antepassados judeus?

- Meus avós paternos. Ambos. O que faz de mim uma meio judia - declarou Charlotte com tranquilidade. - Não lhe disse antes porque achava que nossa amizade era mais importante do que essas noções preconceituosas de Herr Hitler.

Clara ficou em silêncio.

- Agora eu entendo - disse por fim.

- Entende... o quê?

- A sua resistência em aceitar o que o nosso Führer diz. Você tem sangue judeu.

- Perdoe se lhe decepcionei - retrucou Charlotte, com uma ponta de ironia e tristeza.

* * *

Emmeline Bingenheim abriu a porta para ver quem havia tocado a campainha e sentiu um arrepio na espinha ao ver que uma adolescente usando o uniforme azul e branco das Bund Deutscher Mädel, a associação nazista de moças, estava parada diante dela. Apenas passado o choque inicial reconheceu que se tratava de Clara Kronenberg - com o cabelo louro cortado curto, quase à altura da nuca.

- Clara... suas tranças...- disse Emmeline embaraçada.

- Não sou mais uma menina, Sra. Bingenheim - declarou ela, sorridente. - Charlotte está?

- Sim, está. Vai ficar surpresa em vê-la... você saiu do colégio e não deu mais notícias.

- Meus pais me transferiram para um internato do interior - explicou Clara. - Disseram que eu precisava de um ambiente sem distrações para me concentrar nos estudos...

E enquanto entrava na sala de estar seguindo a dona da casa, complementou:

- Estavam também tentando me afastar da BDM, mas não deu muito certo, como pode ver.

E riu. De costas para ela, Emmeline fez uma careta.

- Só um minuto que vou chamar minha filha - avisou.

Emmeline entrou no quarto de Charlotte sem bater, o que surpreendeu a jovem, que estava deitada de costas na cama, lendo um romance.

- O que foi mamãe? Parece que viu fantasma...

- Quase isso - sussurrou Emmeline. - Sua amiga sumida, Clara, está lá embaixo... usando uniforme da BDM.

Charlotte girou o corpo e sentou-se na cama, largando o livro sobre o travesseiro.

- Ela sabe que eu sou Mischling desde o colégio, mamãe - declarou, erguendo-se.

- Se ela sabe e mesmo assim veio até a nossa casa, tome muito cuidado Charlotte. Sua amiga serve hoje ao regime que quer destruir os judeus...

- Eu confio na Clara - retrucou Charlotte, antes de sair do quarto.

* * *

O agente da Gestapo aguardava por Clara Kronenberg na sede das BDM. Conversaram a sós, numa sala reservada para o encontro.

- Como foi sua visita à casa das suspeitas? - Indagou o agente.

- A mãe me pareceu um pouco apreensiva, provavelmente por conta do uniforme - explicou Clara. - Mas ir lá vestida assim, como você sugeriu, foi um modo de lhes dizer que nada tenho a esconder. Quanto à minha amiga, Charlotte, ela me recebeu bem... e insistiu com a mãe que me convidasse para jantar uma ou duas noites por semana, a fim de que pudéssemos atualizar a conversa.

- Excelente! - Parabenizou-a o agente. - A casa das Bingenheim foi denunciada como um possível local de reunião de um grupo subversivo antinazista... precisamos que você busque provas deste suposto envolvimento delas.

- Bem... e se eu não encontrar nada? - Indagou cautelosamente Clara.

- O pai era judeu... e a filha é meio judia, não é? Judeus sempre têm algo a esconder - declarou secamente o agente. - Faça o seu trabalho, Untergauführerin Kronenberg!

- Jawohl - retrucou Clara Kronenberg,

* * *

- Clara! Clara! Prenderam minha mãe! - Charlotte gritava, ao telefone da residência dos Kronenberg.

- Calma, amiga... me conte o que houve. Quem prendeu sua mãe? - Indagou Clara, afastando ligeiramente o fone da orelha.

- Homens da Gestapo! Entraram na nossa casa, reviraram tudo... e levaram mamãe presa!

- Eles... acharam alguma coisa suspeita? - Inquiriu cautelosamente Clara.

- A única coisa suspeita na nossa casa era um exemplar de "Bambi" que minha mãe lia para mim quando eu era pequena! - Explodiu Charlotte.

Clara suspirou.

- "Bambi"... claro. Literatura proibida, você deveria saber.

- "Bambi" foi proibido?! - Exclamou Charlotte incrédula.

- Não pelo conteúdo em si, que nada tem de subversivo - explicou didaticamente Clara. - O problema é com quem o escreveu... um judeu. Livros escritos por judeus estão proscritos no Reich.

- Oh - murmurou Charlotte, emudecendo em seguida.

- Fique calma, amiga. Vou tentar descobrir para onde a levaram... se foi só pelo "Bambi", é possível que não fique muito tempo na prisão.

Após desligar, Clara ligou para o número do seu contato na Gestapo.

- Eu lhe disse que a única coisa suspeita que vi na casa dos Bingenheim foi o livro de Felix Salten - reclamou ela, tão logo o agente atendeu. - E no entanto, levaram a mãe de Clara presa!

- Sossegue, Untergauführerin Kronenberg - retrucou o homem. - O combinado é que não tocaríamos na sua amiga... mas a mãe pode ter informações sobre grupos antinazistas, por isso a prendemos para averiguação. A dica sobre o livro foi muito boa, pois nos deu um motivo legítimo para a prendermos.

E, com uma risada de ironia:

- Não que precisássemos de um, para falar com franqueza.

* * *

Uma semana depois da prisão, Emmeline Bingenheim foi deixada à porta de casa por um carro da Gestapo. Estava suja e cheirava mal, usando ainda a mesma roupa com a qual fora levada. Ainda assim, ao abrir a porta, Charlotte a abraçou com força.

- Mãe... a Clara conseguiu!

- Conseguiu... - disse Emmeline, sem coragem de retribuir o abraço. - Por favor, filha, me solte. Preciso tomar um banho... e você também vai ter que tomar, depois de me agarrar desse jeito.

- Não importa, mamãe... você está em casa de novo!

- Estou... e vamos entrar.

Emmeline encheu a banheira, despiu-se e entrou na água, esfregando o corpo com uma bucha e sabão, enquanto a filha lhe trazia roupas limpas.

- Eu sonhava com isso, todas as noites... - disse ela, abrindo o chuveiro para lavar a sujeira.

- Para onde a levaram, mamãe? - Indagou Charlotte.

- Acho que o nome que dão é... "campo de internação" - refletiu Emmeline, apanhando uma toalha e começando a se enxugar. - Já tinha ouvido boatos sobre eles, mas a realidade é bem pior. E me disseram que esse em que eu estive nem era assim tão ruim... os piores parecem estar reservados aos judeus.

Acabou de se vestir e segurou a filha pelos ombros:

- Vamos jantar... estou morta de fome... vou dormir na minha cama macia, e bem cedo faremos as malas. A Alemanha tornou-se um lugar muito perigoso para gente como nós. Amanhã, partimos para Londres.

- Acha mesmo que devemos ir, mamãe?

- Depois do que me aconteceu, não tenho mais a menor dúvida - retrucou Emmeline. - E se ainda me restava alguma, a sua amiga Clara tratou de esclarecê-la.

- Você a viu, mãe?

- Ela foi até o campo com um agente da Gestapo... o mesmo que me trouxe até aqui, apesar de ter reclamado o tempo todo que eu estava empesteando o carro oficial. Clara me confidenciou que a tendência, infelizmente, é das coisas piorarem... que nós partíssemos logo, antes de novembro chegar.

- Novembro já é terça que vem... - ponderou Charlotte.

- E amanhã é segunda - atalhou Emmeline, antes de sair do banheiro. - Há um trem partindo para Paris, e eu pretendo estar nele - com você.

E na manhã de segunda-feira, 31 de outubro de 1938, mãe e filha despediram-se de Berlim na Schlesischer Bahnhof e embarcaram num trem do Nord Express com destino à Paris.

Nunca mais retornaram à cidade.

- [29-10-2018]