A  noite desce sem luar e sem  estrelas;  tinge  o céu com o negrume da escuridão,  e tece o cenário dos heróis do medo. Temente, o próprio medo treme, e cambaleia. O anjo das trevas passeia, tocando com suas asas a imaginação das crianças. Assustada,  Emília tem medo do homem que cada menino constrói dentro de si, a partir da interação com brinquedos monstruosos. Ela já não gosta  mais dos filmes de terror, e acorda sobressaltada com  pesadelos habitados por criaturas diabólicas, que outrora, via na TV.  Considerava que monstro é criação de mente doentia: diabinhos que o autor transfere em forma de imagem para livros, revistas, e  telinha  da TV.  Se é verdadeiro dizer que os sinais sonoros e visuais descortinam emoções,  também é verdadeiro afirmar que este  mesmo conjunto de imagens e som leva a atitudes e condutas de acordo com a percepção, em torno da qual, orbitam os sentidos do corpo humano. E, pela primeira vez, a boneca de pano foi tomada por  sentimentos humanos: desejou ser a rainha das  bonecas, ter muitos súditos e um grande exército para combater o inimigo que lhe perturba o sono.  Ela queria ser como Bob  que dizia não ter medo de nada.

— Os homens escondem seus medos, quando estão diante das mulheres. Faça  o teste — disse Ravenala —  Quando Bob disser que não tem medo, olhe os lábios dele. Se tremerem ele está mentindo.  
— Não são mais os olhos a janela do coração? Quis saber Emília.
— O rosto é  o lado externo do coração; os olhos, ambos os lados; mas são os lábios que escondem ou revelam a verdade.
Teve vontade de dizer que o coração do homem modifica seu rosto, para o bem ou para o mal. Assim, não podem ser do Bem os brinquedos com faces monstruosos. Então, pensou em construir uma boneca com duas faces: uma com rosto feliz  e outra com rosto  triste. Mas, reprovou ela mesma seu projeto. Melhor fazer duas bonecas: uma triste e a outra feliz, e quando estivesse triste, brincaria  com a boneca triste... Não!  Isso a levaria a entristecer-se mais ainda. E Ravenala sorriu do mar de ideias que invadia sua mente. Depois chorou profundamente, com pena dos meninos que brincam com criaturas monstruosas, e têm suas noites perturbadas por pesadelos.  “Por que não produzir bonecos à imagem e semelhança de santos?  Assim, as crianças sonhariam com anjos, e não com demônios fazendo diabruras em suas mentes.”  E novamente questionou:  Durma com um barulho desse:  “O cravo brigou com a rosa, debaixo de uma sacada, o cravo saiu ferido, e a rosa despedaçada...”  “A canoa virou, deixou de virar. Foi por causa de Rosinha que não soube remar...”    Ora, ora! Que me dizes?  Põe anjo nos sonhos de seu filho, não pesadelos.
Fingindo que dormia, Maria Emília cobriu o rosto,  tentando  compreender o que pensava a amiga a respeito dos monstros  apresentados às crianças como inofensivos brinquedos. E concluiu: “Não existe monstro bonzinho. Monstros  se apresentam  como justiceiros, fazem o bem a uma pessoa e o mal a outra em nome da justiça.” Descobriu o rosto e pediu a Ravenala que contasse uma estória que lhe fizesse dormir.
— Conte carneirinhos. Conte assim: “Um carneirinho pulou a cerca;  dois carneirinhos, três carneirinhos pularam a cerca...”
— Já  contei 99 e ainda não consegui dormir.
— É porque uma desgarrou-se! Não dormirás, enquanto não encontrares a ovelha perdida.
A boneca  dormiu e sonhou. Viu o paraíso perdido. E lamentou: “O mundo encantado está em processo de desconstrução. Muitas bonecas foram  jogadas no lixo, porque lhes faltavam braço ou pernas; outras agonizam arrastadas por  águas turbulentas da liberdade descontrolada.”