A porta se abre

[Continuação de "A acolhida"]

Pouco depois das 21 h, conforme prometido, Graciela ficou online como CielaWw16. No seu perfil pessoal, Jay havia lido a primeira estrofe de uma canção do Oasis, "She Is Love":

"Oh when the sunshine beckons to you

And your wings begin to unfold

The thoughts you bring and the songs you sing

Are gonna keep me from the cold"

- Então, esta é você? Uma fã de Oasis? - Indagou Jay, sentindo-se um tanto mistificado.

- Gostava mais da fase psicodélica deles - admitiu Graciela. - Mas mesmo assim, coloquei a abertura de "She Is Love" no meu perfil. E você, do que gosta, DJay4902?

- Michael Jackson. Pode rir, se quiser...

- Não vou rir - prometeu Graciela. - Mas o Michael anda tão estranho ultimamente... não sei se ainda gosto dele.

- Como se estivesse se transformando em outra coisa?

- Acho que ele já se transformou em outra coisa - retrucou Graciela. - A metamorfose me parece completa agora.

Pausa. Jay voltou a digitar.

- CielaWw16... o 16 é pela sua idade?

- Eu faço 16 este ano. Em 31 de outubro.

- Não brinca! No Halloween?

- Isso.

- Legal! Mas e quando tiver 17? Vai mudar o login?

- Acho que vou continuar com 16 mesmo...

E pôs um :) no fim da frase. Após um breve hiato, prosseguiu:

- Por que me procurou? - Indagou ela.

- Engraçado me perguntar... bom, você se destaca muito no meio de um bando de garotas louras de Harthford. Eu não tinha como não te ver.

- Como um gato preto num campo de neve?

Ela acrescentou um ;) à frase para demonstrar que se tratava de uma ironia.

- Não desta maneira... mas também me lembrei de algo que ouvi minha avó dizer algumas vezes. Sobre Harthford.

- O que sua avó falou?

- Que não há negros nem hispânicos em Harthford. "Mas já houve", ela me disse.

- Nossa... mas houve quando?

- Eu não sei... nunca tive curiosidade em saber. Você nunca perguntou aos seus pais?

- Fala dos meus pais adotivos? Bem... não.

- Não? Se eu morasse aí, iria tentar descobrir. Não acha isso esquisito?

- Harthford é uma cidade estranha... quer dizer, eu cheguei aqui com 12 anos, já tinha uma boa noção de como é o mundo lá fora. As pessoas aqui são, bem... fechadas. E a curiosidade não é vista com bons olhos.

- Eu gostaria de ir ver com meus próprios olhos... mas não tenho nenhum motivo específico para colocar os pés aí - arriscou Jay.

- Bom... eu não tenho muitos amigos, fora a turma do colégio - digitou Graciela. - Mas talvez possa lhe convidar para conhecer meus pais e minha casa.

- Acha que seus pais aprovariam a minha visita?

- Desde que eu solicite a eles e você se comprometa a seguir as regras...

- Regras?

- Regras da casa. Oh, não se assuste. As pessoas em Harthford são muito formais... talvez um pouco demais, devo admitir. Por exemplo, você deve descalçar os sapatos na entrada da casa e calçar pantufas.

- Que engraçado... parece um costume japonês!

- Não há japoneses em Harthford - assegurou Graciela.

- Claro que não há - assentiu Jay. - Mas essa visita não seria no seu aniversário, não é?

- Falta mais de um mês para o Halloween... estou pensando numa data mais próxima. Talvez você possa vir almoçar num fim de semana e aproveita para tirar suas dúvidas sobre a população da cidade com o meu pai. Ele é historiador, um homem muito inteligente.

- E como irá me apresentar?

- Um amigo do museu de Kinbrough, está bom pra você?

- Me parece... bem formal.

- Acabamos de nos conhecer - replicou Graciela.

- Parece justo - concordou ele.

- Você tem celular?

Jay tinha um surrado Nokia 5190 preto, que mais parecia um tijolo. "Melhor não entrar em detalhes", pensou. Digitou o número, com o código de área.

- Certo - confirmou ela. - Infelizmente, eu não tenho celular... nem sei se temos cobertura de sinal aqui em Harthford, já me dou por satisfeita por ter um computador e internet.

- Então, só vamos nos comunicar pelo AIM? - Lastimou ele.

- Por enquanto, sim. Mas se eu precisar te mandar algum recado, ligo de um telefone público.

- Certo.

- Amanhã às 21 h? - Indagou ela.

- Estarei aqui... mas precisa sair tão cedo?

- Toque de recolher - respondeu ela. E acrescentou um ;) à frase, para sugerir que estava brincando.

[Continua em "Há uma possibilidade"]

- [13-12-2018]