A espécie de Ouro

Ouço a água do mar ricocheteando no casco duma nau, fico nauseado e tenho vontade de adormecer novamente, mas, mesmo se quisesse, não conseguiria, pois apesar do corpo cansado, minha mente ousa ficar em vigília nesse ambiente insólito, fétido e escuro. Perscruto o lugar, vejo se há algo para comer ou beber, e só encontro barris de pólvora sobre tábuas pilhadas, ou qualquer outra matéria explosiva a julgar pelo símbolo chamativo de perigo. Tento lembrar-me de como parei aqui e o que estava fazendo, afinal, recordo-me vagamente que nadava velozmente em alto mar quando perdi a consciência...

Já se passaram horas desde quando acordei, e atentando-me aos sons advindos da proa, creio haver marinheiros cuja atividade consiste em pesca, ou saque de mercadorias, pois o ressoar da rede é-me comum, assim como o grito atordoador de saqueadores. Já são 23 horas, se o relógio não estiver desatualizado, a tempestade intensifica-se e com ela a náusea da água chocando contra o casco... Aos poucos, percebo que a rede é reposta ao mastro, e ouço passos aproximando do porão; muitos passos, na verdade, apressadamente num frêmito ansioso deslocam-se e abrem a porta à chave: onze marinheiros entram, fecham a porta e ligam a luz a querosene.

Meia noite, e o alvoroço de vozes me confundem porque os sons são indistinguíveis pela angustia dos marinheiros. Uns dizem se fixaram o leme ao norte, outros indagam se os arpões estão armados se o monstro entrar, os mais desesperados choram e persignam-se num gesto mesquinho, outros me olham e fazem sinal de cruz. O capitão do navio tenta acalmar os mais temerosos com sua voz eloquente e atordoadora, diz que está tudo bem e o leme fora travado, no entanto, apaziguando os ânimos, surgiu-se na proa um som de uivo e a inquietação assumiu o espírito dos marujos. O soar de garras metálicas ensurdecedoras no mastro e na madeira carvalho da polpa, com pegadas surdas eram-me familiar, aprazível e na reminiscência o mar azulado nas profundezas do pacífico veio a mente; já àqueles que estavam junto a mim, apavoradíssimos.

Era madrugada, três ou quatro horas da manha, quando adormeci. Antes, porém, indaguei o que fazia na nau, o que eles faziam ali e o que aconteceu comigo, já que tinha poucas recordações sobre o meu passado; fingiram não saber, ou desconversavam – percebi rápido que escondiam algum segredo, e eu era parte de um estratagema. No dia seguinte eles saíram e, quando fui respirar ar límpido, fui restringido – senti um líquido rubro esbranquiçado percorrendo minha cabeça, tive tempo de ver a barra metálica que fora utilizada para me derrubar antes de desmaiar.

São seis horas da tarde, 24 horas após meu aparecimento nesse lugar lúgubre, e mal sinto fome; em verdade, não sei se isso faz muito sentido: mas sinto que não necessito comer, ou melhor, não preciso comer, porque não sinto fome e isso me dá irritação; ontem marujos ofereceram-me peixe e espantosamente rejeitei a ideia de modo que um deles gritou “é verdade, ele não se alimenta” e correu como bêbado para a extremidade oposta praguejando-me. Ouço o mesmo som rotineiro de ontem e a cena se repete monotonamente e penso se isso não passa de um déjà vu, ou um sonho intermitente.

Às 23 horas os marinheiros entram novamente, o alvoroço também. Não muito tempo depois o som abafado de pegadas, e o uivo tornam-se fortes, estrondosos; como ontem, uns choram, outros tremem de medo e outros pálidos desmaiam nas tábuas empilhadas; o capitão-mor numa calma simulada tenta apaziguar os ânimos, mas todos o ignoram quando as garras abalroam contra a porta metálica que dá acesso ao porão. Noto que a cada vez que as garras arranham o portão, mais calmo e resoluto fico; quando as patas desceram as escadas fiquei tão plácido que pude sentir meu coração bater e uma felicidade tomou-me conta: um sentimento de pertencimento de igual força inundou meu espírito e quis por tudo sair do lugar, apesar dos marinheiros a minha volta temerem tal ato. Os tripulantes, vendo-me naquele furor de sair, armaram um conluio para deter-me: pegaram arpões e madeiras e vieram em minha direção; num ímpeto de sobrevivência esquivei rapidamente numa velocidade sobre humana e grudei, não sei como, na parede e fiquei fitando-os – tinha escamas nos pés! Soltei, então, um uivo tão natural quanto ao que vinha do lado de fora e, foi nessa hora, que a porta foi estourada pela fera.

Ao ver a fera, que me era natural, recobrei porque estivera lá: estava navegando na profundeza do oceano pacifico e decidi ir à superfície para ver o crepúsculo purpúreo da noite, embora fosse desaconselhado pelo Rash: meu amigo sagaz e de muita experiência.

Sabendo da minha personalidade forte, fora comigo a superfície para assegurar que não fizesse travessura ou colocasse-o em perigo. Mal me desloquei na lamina superficial do mar fui enovelado por algo que pareceu tira, ou rede. Bravejei muito e venceram-me pelo cansaço, enquanto Rashid ficara enfeitiçado pela lua crepuscular; na iminência de perder a consciência, optei-me por voltar à forma humana e o processo de transmutação, decerto, obscurecera minha memória.

Minha captura tem um preço: cinquenta mil dólares. Por pertencer a uma espécie tão sagaz aos hominídeos, porém tão mais fracos por termos limitações espaciais e recursais para desenvolvermos como sociedade, sou alvo fácil para ricos comerciantes bípedes.