O promontório

Amanheço:

Lodo em toda parte. O tornozelo coberto por matérias pútridas. O sol de meio dia escaldante queimando as costas, seu reflexo a reina. Terra plana de gramíneas de cortantes folhas. Sem nuvens e a única coisa a vista é um penhasco, um promontório. No céu há alguns urubus, ou qualquer outra ave de grande porte nas alturas.

Estou caminhando com minha mula, ao lado tenho os mantimentos, mas não durará muito tempo. Duas garrafas de águas, algumas rapaduras e pequenos pães amanhecidos; preciso, porém, dividi-los com meu bem semovente – fazendo as contas, o resultado é claro: mantimentos para um dia. A distância estimada do promontório é de três quilómetros.

Não sei como parei aqui. Estava dormindo num aconchegante sofá e, de repente, acordei nessa desolação insondável com cheiro pútrido de matéria orgânica que há de estar aqui desde que o tempo é tempo. Já tentei afastar-me do cheiro com mascaras improvisadas, contudo tudo não passou de vã tentativa.

Agora me vem à memória. Eu estava sentado na poltrona e planejava limitar as respirações a uns punhados de inspirações. Estou morto? Provavelmente, está será a minha sina a partir de agora? Uma punição pelo encurtamento da vida, sim?

Caminho torpemente. A cada passo caminhado afasto-me da montanha que parece o paraíso! A Cada passo, mais passos à distância!

O oásis é o promontório. Os pássaros que outrora descrevi para lá voam ajudado pela corrente de ar ascendente! Atrás de mim, creem, vejo insondáveis pessoas ao mesmo caminho; algumas com aparência semimorta, outras de fisionomia intacta. Parece haver matizes, uma faixa na qual as pessoas são divididas baseadas na confortidade. Quanto mais longe da perfeição tão mais torpe o lugar.

Ao meu lado, a minha mula. A algumas distâncias à minha esquerda, uma senhora, à minha direita uma criança. Todos olham apaixonadamente a água diáfana do etéreo sonho. Todos carregam consigo um animal de estimação. Todos com alimentos encapsulados numa bolsa de couro. Todos com pés em lamas fétidas.

Já é noite. O tempo aqui passa rápido e no nosso destino ainda é dia – lá o sol não se pôs. Apesar de incansável viagem, retrocedi do benquisto destino. Minha mula reclama água, meu estômago faz o mesmo. A água é única, e parece-me que preciso tratá-lo bem. Ajudara-me a carregar o fardo, a tapar o torturante sol. Além disso, suspeito que o caminho da salvação é amar esse animal: mudo, estranho e carinhoso.

Decido dormir sobre seu abdómen e ele acata docemente. Nunca o vi rejeitar minha ordem e imagino que pode ajudar a explanar o acontecimento.

Desconfio mais: que ele confirme ou rejeite a minha hipótese outrora levantada: estou morto pagando meus pecados. Digo algumas esperançosas palavras ao vento gélido que enregela as palavras. É difícil pronunciá-las, temo que a tornar-me-ei mudo.

A criança e a idosa, apesar do gélido ambiente, afasta-se para seus retiros com os respectivos animais que são acarinhados e afagados com amor. Ao fazer o ato altruísta teletransportam-se à próxima banda: menos repugnante, e de mitigada áurea mortuária: mais próxima do oasis!

Adormeço.

Acordo:

Num hospital emergencial. O médico examina a bula enquanto abro as sortudas pálpebras. Digo sobre o animal, sobre o oásis, sobre o ambiente pútrido para todos a minha volta. Minha mãe me afaga chorosa, cachorro ao lado; amigos perto da porta. Embora tudo não passasse de um sonho, ou experiência quase morte, aprendi muitas lições. Afaguei meus pais, meu cachorro e àqueles que me salvara – e vi neles o oásis que tanto procurava.