Hic sunt lupi

[Continuação de "Nossa modesta contribuição"]

Com antecedência, a lareira da principal sala de estar do Palácio Golescu em Bucareste havia sido acesa, prevendo que a noite de fim de primavera seria fria. Sozinho num cadeirão estofado, um robe adamascado sobre o pijama de flanela, uma taça de conhaque francês na mão, o hospodar Radu Bucsa Nicolescu apreciava as chamas que consumiam a lenha contida por uma grade de ferro. Finalmente, um telefone preto colocado numa mesinha ao seu lado, soou. Ele aguardou o segundo toque antes de retirar o fone do gancho.

- O comissário Zakhar Ilyich está aqui, alteza - disse a voz do mordomo do palácio em seu ouvido.

- Faça-o entrar - replicou o príncipe, recolocando o fone no gancho.

Não precisou esperar muito. A porta da sala foi aberta e por ela surgiu o chefe da espionagem da embaixada soviética em Bucareste. Zakhar Ilyich Yermakov estava usando o seu uniforme de serviço da NKVD: camisa cáqui de mangas longas, calças bombacha azuis, botas pretas de cano alto. Ao entrar, retirou o quepe da cabeça e colocou-o sob o braço esquerdo, fazendo uma ligeira vênia com um sorriso irônico no rosto.

- Camarada hospodar - saudou.

- Se vai me chamar de "camarada", terei que chamá-lo de Zakharik, major - retrucou fleumaticamente o príncipe, erguendo a taça. - Um conhaque?

- Grato hospodar, mas não bebo em serviço - arguiu o oficial soviético.

- Então, queira sentar-se - solicitou o príncipe, fazendo um gesto para um cadeirão em frente ao seu, junto à lareira. - Temos assuntos para colocar em dia.

Zakhar Ilyich sentou-se e colocou o quepe no colo. Aguardou enquanto o hospodar tomava um gole de conhaque, sem pressa.

- Como então vocês estavam certos, sobre os planos de Hitler para a invasão da Polônia - divagou Radu Bucsa, depositando a taça na mesinha do telefone.

- Nosso serviço secreto é o melhor do mundo - jactou-se o comissário. - E o camarada hospodar gostaria de saber quando tivemos certeza de que ela iria ocorrer?

O príncipe ergueu os sobrolhos e cruzou os braços.

- Ontem, Zakharik?

O comissário abanou negativamente a cabeça, um sorriso triunfante nos lábios.

- Em 1935.

- E... como chegaram à esta conclusão? Consultando o desenho das folhas de chá no fundo duma xícara?

Zakhar Ilyich abanou novamente a cabeça, ainda sorridente.

- A Lei de Proteção aos Animais, de 1933, e as restrições à caça, principalmente às de 1935, instituídas pelo Reich. O camarada hospodar certamente deve estar à par delas...

- Vagamente - admitiu o príncipe. - Lembro que foram consideradas as mais avançadas do mundo, o que não deixa de ser um paradoxo para um sujeito sedento de sangue como Hitler. Mas o que isso tem a ver com a Polônia?

- As restrições à caça de animais selvagens foram estendidas aos lobos em 1935... ocorre que há muito os lobos estavam extintos na Alemanha. Mas sabe onde ainda podem ser encontrados? Sim, na Polônia!

O príncipe descruzou os braços, expressão de dúvida no rosto.

- Vou fazer de conta que acredito nessa hipótese, camarada comissário. Diga o que pode fazer para me ajudar a retirar meus concidadãos de Varsóvia e fico lhe devendo um favor.

- O qual será cobrado - advertiu Zakhar Ilyich, tornando-se subitamente sério. - Muito bem: o que vou lhe dizer agora é estritamente confidencial e não pode sair destas paredes. Temos um acordo?

- Sobre a não divulgação... temos um acordo - prometeu o hospodar, erguendo a mão direita como que para fazer um juramento.

- Muito bem - prosseguiu o comissário. - A União Soviética e o Reich assinaram um tratado secreto, pelo qual a Polônia deixará de existir e será dividida entre nós.

- Como é que é? - O príncipe inclinou-se para a frente, atônito.

- Exatamente o que acabou de ouvir. Não vou discutir aqui as razões que nos levaram a assinar o tratado, pois não é o que nos interessa no momento. O que deve saber é que, sob a proteção do Exército Vermelho, a sua Força Expedicionária poderá passar pelas linhas nazistas sem ser incomodada.

- Minhas tropas podem passar pela Hungria e pela Eslováquia sem problemas, já que ambas estão na esfera de influência dos nazistas - atalhou o hospodar. - Minha preocupação é com a entrada em território polonês; não quero meus homens no meio do fogo cruzado entre poloneses e alemães.

- Vocês não poderão ir por terra - declarou enfaticamente o comissário. - Os nazistas não terão dificuldade em derrotar o exército polonês, que é bem fraco, e logo deverão estar em Varsóvia. Se quer mesmo retirar em segurança seu pessoal da Polônia, sugiro que mande aviões de transporte, não tropas. E deve fazer isso o mais rápido possível: Hitler não pretende deixar que o seu pessoal diplomático retorne para casa.

O hospodar empalideceu.

- Mas eu falei com o embaixador alemão e ele me prometeu...

- Acredita mesmo naquela cobra venenosa do Lorenz Klugmann? - Indagou o comissário com um sorriso sardônico. - Os nazistas querem resolver um mistério do qual vocês, valaquianos, podem ter a chave. Hitler não hesitará em sequestrar o seu pessoal diplomático e torturá-los até a morte, ainda que eu imagine que o seu governo não seria tão estúpido a ponto de colocar pessoas com esse conhecimento num local desprotegido como Varsóvia...

- Não... não... - murmurou aturdido o hospodar. - Não temos esse tipo de pessoal em nossa equipe diplomática. Todavia... o que disse sobre Hitler querer interrogá-los faz sentido. Embora seja verdade que vocês também gostariam de ter acesso à mesma informação que os nazistas buscam.

- De fato - admitiu o comissário. - Mas não queremos obter isso à força, e sim através de cooperação. Nós os ajudamos a trazer de volta o seu pessoal, e no futuro, vocês nos ajudam com algumas informações no nosso próprio projeto. Nada mais do que isso.

O hospodar respirou fundo. Depois, mãos apoiadas nos braços do cadeirão, encarou o interlocutor.

- Muito bem. Como pretende resgatar meu pessoal de Varsóvia?

[Continua em "A política por outros meios"]

- [04-04-2019]