O homem no bonde de Shau Kei Wan

Com alívio, ao chegar no terminal urbano de Shau Kei Wan, vi que o bonde verde e branco ainda não partira. Subi para o segundo andar, e pedi licença antes de me sentar ao lado de um cavalheiro vestido à moda Qing, com um tradicional changshan de seda e um guanmao azul sobre a cabeça. Ele olhou com curiosidade para os meus trajes ocidentais.

- Você trabalha para os japoneses? - Indagou, em cantonês.

- Eu sou português - desconversei, também em cantonês. - O meu país está neutro nesta guerra.

- Ah, entendo - replicou ele, com um aceno de cabeça.

Instantes depois, o bonde iniciou sua longa viagem até Kennedy Town, via Happy Valley. Um pouco antes da parada da Tai Koo Shing, a viagem foi interrompida para a passagem de um comboio militar. Dois soldados entraram no bonde e começaram a pedir documentos aos passageiros, quase todos chineses. Como normalmente ocorria ao avistarem um ocidental, dirigiram-se imediatamente para mim, o que deve ter sido um alívio para os demais, deixados de lado.

- Papéis - exigiu em japonês um dos soldados, cara de poucos amigos.

Puxei meu salvo-conduto, expedido pelo governador militar de Hong Kong. O soldado exibiu o documento para o colega, que fez um gesto de concordância.

- Está em ordem; o português trabalha para o "Hong Kong News".

O primeiro soldado devolveu o salvo-conduto com uma vênia rígida de cabeça. Em seguida, interpelou meu companheiro de viagem.

- Papéis, chinês.

O cavalheiro apresentou sua identidade emitida pelas forças de ocupação. Seguiu-se o mesmo ritual: o documento foi apresentado ao segundo soldado, que apenas balançou a cabeça.

- Em ordem - declarou.

O primeiro soldado não entregou a identificação nas mãos do meu vizinho de assento: atirou-a em seu colo, com desprezo. Em seguida, aparentemente satisfeitos, desembarcaram do veículo.

Ficamos em silêncio até que o bonde retomou seu percurso, após a passagem do comboio. Virei-me para o cavalheiro e indaguei:

- Com os ingleses, era melhor?

Ele me concedeu um sorriso triste.

- Digamos que os ingleses estavam interessados no progresso desta colônia; os japoneses, por outro lado, parecem dispostos a destruí-la - e ao povo que aqui ficou. Você deve testemunhar o meu povo morrendo de fome, pelas ruas, sem que ninguém lhes estenda a mão.

Eu sabia que ele estava certo, e que o meu papel - trabalhando como um dos redatores de um jornal de propaganda em inglês, a serviço dos japoneses - era afirmar justamente o contrário.

- Há pessoas boas e más em todos os lugares - redargui diplomaticamente. - Estou ciente de que as forças de ocupação cometeram... excessos... mas isso é da natureza da guerra.

Meu companheiro de viagem voltou-se para a paisagem lá fora, antes de comentar em voz baixa:

- Todos precisamos comer, não é mesmo?

- [22-04-2019]