Pensando com o fígado

A ovelha foi degolada com tamanha rapidez e presteza, que sequer teve tempo de emitir um último balido. Aberto seu ventre, a arúspice enfiou as mãos por entre as entranhas para arrancar o fígado ainda quente. Sentado num escabelo, o consulente assistia mesmerizado ao trâmite, enquanto aguardava em expectativa a análise.

- Fígado bem constituído... - avaliou a arúspice, comparando-o com um modelo de argila dividido em 16 setores, contendo pequenas cavidades. Apanhou uma cavilha de madeira e a inseriu na cavidade de uma das divisões. - A parte regida pelo deus do comércio está com um aspecto favorável.

O consulente remexeu-se inquieto em seu assento.

- Por outro lado, este lobo regido pelo deus da guerra indica que a atividade comercial, no presente momento, está sujeita a percalços.

E enfiou uma cavilha no respectivo orifício.

- Essa resposta foi meio vaga... - atalhou o consulente. - A atividade comercial sempre está sujeita a percalços. O que me diz sobre viagens?

A vidente lançou-lhe um olhar torto e virou o fígado entre as mãos ensanguentadas.

- A parte regida pelo deus dos viajantes, não parece auspiciosa - retrucou. - Principalmente se estivermos falando de viagens por mar.

- Pelos deuses! Mas eu lido com importação e exportação... preciso usar navios! - Protestou o homem.

- Já pensou em usar caravanas de camelos? - Indagou a arúspice, inserindo mais uma cavilha num orifício.

- Não tenho como atravessar o Mediterrâneo em lombo de camelo! - Exasperou-se o consulente.

- Basta que as caravanas cheguem até Alexandria - sugeriu a vidente. - De lá, você embarca a carga em navios... e os navios atravessam o Mediterrâneo.

A expressão do consulente mudou. Estava realmente considerando a sugestão.

- Isso evita a parte do deus da guerra?

- Os prognósticos são bons - assegurou a vidente, muito séria.

- Não daria para ser mais precisa? - Redarguiu o consulente, agastado.

- Divinação não é uma ciência exata - defendeu-se a vidente.

- [04-11-2019]