NOITES MEMORADAS

Século XX.

Meado dos anos 50.

Uma longa temporada de seca assolava e maltratava todos os viventes daquela localidade que pouco tinham para sobreviver.

A visão do verde campestre havia desaparecido totalmente dos olhos de todos, enquanto que a fome, aliada à sede, cuidavam do triste e doloroso fim de tudo, principalmente do fim dos animais. Naquele lugar a vida estava ameaçada com a escassez de víveres e a solução seria ir para onde houvesse possibilidade de trabalhar, ganhar algum dinheiro para cuidar da sobrevivência de si e da própria família e, quem sabe, no futuro todos dissiparem dali. Foi pensando desta maneira que meu pai - cheio de tristeza -, convidou um amigo chamado Valdumiro para juntos irem tentar a vida em São Paulo, e Valdumiro aceitou.

O maior empecilho era o de ambos serem totalmente analfabetos e temiam das dificuldades de como viver naquela cidade grande, rica, tão distante e tão famosa. Certamente lá eles teriam qualquer trabalho e mandariam dinheiro para a família...assim, imaginavam.

Ambos discutiam sobre todas as possibilidades, mas o maior temor era o do fracasso, e isso os atormentava, pois, antes de tudo, teriam que se endividar ao adquirir dinheiro emprestado para custear as despesas da grande aventura. Mas não havia outra solução, era ir ou morrer de fome. E, de fato, se endividaram.

Para início das dificuldades eles não tinham nenhum tipo de transporte senão o cavalar. Puseram todos os planos em prática e... por fim, chegou o dia da partida.

Oito horas da noite.

Iriam cavalgar aquela noite toda até chegarem na primeira cidade onde teriam meio de transporte motorizado.

Meu pai montou no seu jumento e nele se acomodou com uma mala de couro, uma mochila com comida e um cantil de cabaça cheio d'água. Na sua frente sua mulher ladeada por seus seis flhos menores, deixavam escapar o triste som de choros e soluços que pareciam infindos. Minha mãe, agarrada a seus seis filhos, lacrimejava em desconsolo. Aquela triste cena me parecia ser o fim de tudo; o fim do mundo. Não tardou e dois cavaleiros se aproximaram, era o Valdumiro e o Dirceu que foi contratado para ir junto e depois trazer os animais de volta. O combinado era irem até a cidade de Inhambupe. E foram. Tão logo Dirceu voltou com os animais. Lá os dois embarcaram num ônibus jardineira que os levou à capital baiana onde ambos se acomodaram nos assentos do famoso "trem baiano, da Leste Brasileiro" e nele foram até a cidade de Monte Azul no estado de Minas Gerais. Lá fizeram baldeação para outro trem com destino à cidade São Paulo. Dai em diante não houve nenhum conforto e o mais estafante era a falta de lugar para sentarem. Tiveram que ficar em pé por quase dois dias de viagem com sede, fome e sono. O trem partiu tão cheio que dentro dele não havia espaço para se mexer no lugar. Vez em quando se ouvia alguns bate-bocas por motivo de espaço e desconforto.

Não mais que oitenta quilômetros distantes de Monte Azul o trem atropelou um boi e descarrilou um vagão causando pavor e pânico em todos. Ninguém se feriu. Ali fizeram uma fogueira e ficaram muitas horas no frio das montanhas comendo a carne assada do boi até prosseguir viagem.

Chegando em São Paulo foram trabalhar como ajudante de obras em contrução civil e o pouco que ganhavam mal dava para si próprios.

Passado alguns meses receberam notícias de que na terra que deixaram chovia bastante e que o verde já era abundante nas pastagens. Os dois se animaram e combinaram voltar pra casa.

Certa noite, quando já íamos deitar, bateram muito forte no portão do fundo da nossa casa. Nos assustamos e ficamos com medo de ser um ladrão querendo nos atacar, mas, de súbito, quem batia no portão passou a gritar nossos nomes e logo reconhecemos a voz. Era a voz de meu pai que acabara de chegar de surpresa, trazendo para seus filhos muitos doces, bolachas, correntinhas com crucifixos e outras com medalhas de santos como recordação da sua sofrida aventura.

Aquela noite foi longa e nela ouvimos muitas narrativas sobre as dificuldades enfrentadas naquela grande jornada de migração.

Durante minha infância vivi duas importantes noites que ficaram gravadas como: a noite que perdi e a noite que ganhei meu pai, sendo que a primeira me banhei com lágrimas de tristeza e a segunda com as de riso e felicidade.

José Pedreira da Cruz
Enviado por José Pedreira da Cruz em 03/07/2020
Reeditado em 04/04/2021
Código do texto: T6994593
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