Ao seu dispor

Quando Sjutsje finalmente recolheu-se ao quarto, a primeira coisa que percebeu foi que alguém havia colocado um copo, uma jarra d'água, e um prato com stroopwafels sobre o criado-mudo. Perguntou-se quem, além das outras duas residentes, teria acesso ao quarto, e a resposta óbvia era a criadagem, embora não tivesse visto outra pessoa além do auxiliar de cozinha, Richold. Pouco provável que houvesse sido ele o responsável, e deixou para descobrir na manhã seguinte quem respondia pela tarefa.

Havia uma janela por trás da cabeceira da cama, e por ela podia-se ver a floresta que isolava Hegestap da estrada para Reeddak, e além dela, as terras baixas de Middenflakte sob a luz da lua em quarto crescente. Tudo muito tranquilo, silencioso e coberto de neblina.

Depois de acender o abajur de pé no lado oposto ao criado-mudo e apagar a luz do quarto, Sjutsje sentou-se na cama e comeu um stroopwafel; pegou-se pensando se deveria ir logo escovar os dentes, mas resolveu adiar a decisão. A desculpa é que queria dar uma boa olhada no Regelboek antes de dormir. Pelo visto, teria que se policiar, ou iria engordar alguns quilos durante sua estadia no castelo...

O livro de regras estava, conforme havia informado Frauke Wassenaar, na primeira gaveta do criado-mudo. Para surpresa de Sjutsje, o exemplar não parecia uma cópia, mas uma primeira edição. Não apenas isso, corrigiu-se em seguida: o manuscrito original. O Regelboek, com sua encadernação de couro gasta coberta de manchas suspeitas, tinha suas páginas amareladas escritas em negro num gótico elegante, com letras capitulares em vermelho no início de cada parágrafo. As regras eram organizadas por temas, cada um deles agrupando vários capítulos. E o que eles abordavam, não parecia exatamente o conhecimento básico de biblioteconomia que ela havia aprendido no Liceu.

Cuidar da biblioteca, começava a perceber, era cuidar de um organismo vivo.

* * *

Sjutsje acordou com batidas na porta; sentou-se na cama, assustada, sem saber direito onde estava. Só depois sua mente foi entrando em foco.

- Srta. Sjutsje! Café em meia hora! - Gritou uma voz feminina do lado de fora.

- Espere! - Gritou a jovem, erguendo-se e deixando cair no chão de tábuas enceradas o livro de regras, com o qual aparentemente adormecera na noite anterior. Mais ainda: dormira vestida e muito provavelmente sem escovar os dentes, constatou com desgosto ao caminhar trôpega em direção à porta, que abriu de supetão. No corredor estava uma criada, não muito mais velha do que ela, usando um avental branco sobre um vestido marrom antiquado.

- Oi, bom dia... como se chama? - Indagou Sjutsje, tentando recompor os cabelos desalinhados.

- Bom dia! Sou Sieu, senhorita - identificou-se a criada, flexionando os joelhos numa saudação que Sjutsje admirou-se estar ainda em uso, mesmo naquele interior isolado.

- Acho que dormi lendo o Regelboek... - desculpou-se Sjutsje. - Espero não ter perdido a hora.

- Não perdeu - assegurou a criada, bem-humorada. - Eu faço o serviço de despertador para as residentes, como a senhorita.

- Isso quer dizer... que você vai vir me acordar todas as manhãs? - Indagou Sjutsje surpresa.

- Sim, senhorita - afirmou Sieu. - Eu vou vir acordá-la, e também arrumar o seu quarto e trocar a água e os stroopwafels toda noite.

- Ah, então foi você... - murmurou Sjutsje.

Sieu apontou para o prato de waffles, praticamente intocado.

- Se a senhorita quiser frutas, ou qualquer outra coisa para beliscar durante a noite, é só me avisar; não gostou dos stroopwafels?

- Ah, gostei sim, Sieu; mas já estava de barriga cheia, grata. Talvez à noite eu lhe peça para trazer um chá... para não correr o risco de apagar de novo durante a leitura.

O sorriso no rosto de Sieu intensificou-se.

- Não se preocupe, senhorita. Isso faz parte do processo.

- Qual processo? - Sjutsje franziu a testa.

- A afinidade.

Sjutsje apenas balançou a cabeça, intrigada.

- Naturalmente. A afinidade.

E encarando a empregada:

- É bom saber que tem alguém da minha idade por aqui. Podemos conversar, quando você não estiver de serviço?

Sieu ficou séria e olhou para ambos os lados do corredor, antes de responder:

- A senhora De Vos não gosta muito que conversemos com as residentes, mas...

Baixou a voz:

- Pode pedir à ela que me mande ajudá-la a pentear o cabelo ou qualquer coisa assim.

- Eu posso pentear meu cabelo sozinha - sussurrou Sjutsje de volta.

- É só para não despertar suspeitas - replicou Sieu, sorrindo novamente.

- Ah, sim - assentiu Sjutsje.

- Vinte minutos para o café, senhorita - disse Sieu em voz alta. - Não se atrase!

- [Continua]

- [29-11-2021]