Cica ( Fragmento)
Não sei exatamente em que momento passei a amá-lo, até hoje não consigo entender por que o amo? A única coisa que sei é que não perdi um só dos seus discursos, durante trinta anos tive o final de tarde como sagrado. Já fui seguida inúmeras vezes a mando do meu marido, com quem estou casada há vinte nove anos. Apesar de saber, nunca tocou no assunto comigo, talvez porque ele não se sentisse ameaçado ou talvez porque não acreditasse na minha fixação.
Um ano antes de conhecer o Emanuel, que hoje é meu marido, conheci na subida da Ponte Duarte Coelho o homem que com seus discursos mudaria minha vida e me tornaria uma ativa representante dos problemas políticos da minha cidade. Eu vinha descendo a Ponte Duarte Coelho no sentido Rua da Aurora quando vi de longe um homem em pé sobre os canteiros de plantas que separava o rio da rua, em baixo de um Flamboyant. Ouvi primeiro sua voz que clamava a participação das massas, citando Marx e Engels, de vez enquanto citava trechos de romances de Dostoievsky . Nunca tinha visto um misto tão volumoso de saber e simplicidade, apesar disso, era difícil alguém parar para escutá-lo. Era um sujeito magro, alto, de rosto afilado, cabelo curto, nariz cumprido e barba farta que se afunilava no queixo. Vestia-se muito mal, uma camisa tergal transparente, de tanto que fora usada, a calça já estava coronha e uma sapato de couro roto completava seu traje. Era muito diferente dos que representavam o povo nas tribunas da cidade. Era singelo, o olhar manso e tranquilo ao fitar os olhos dos ouvintes ou a paisagem quando ninguém parava para escutá-lo.
Cica, como era conhecido, era capaz de despertar paixão à primeira vista, foi exatamente o que aconteceu comigo. Logo depois de conhecê-lo pensei em abandonar tudo, deixar os estudos, não casar, entregar-me por inteira àquele homem a quem meu espírito estaria rendido durante toda vida.