(Imagem Google)


Pacto Sinistro


 
 
 
Antonio, Totó, assim apelidado pela família, era o caçula de cinco irmãos e, com uma diferença muito grande de idade do seu antecessor e dos demais, por consequência. Com isso, não participava das brincadeiras com os irmãos e era sempre deixado de lado, o que o fazia muito diferente de todos eles.

Era muito tímido, introvertido, calado e muitos o chamavam de “esquisito”. Isso o incomodou até uma certa fase da sua vida, mas, também o ajudou no seu amadurecimento quando passou a entender o significado dessa palavra, ou seja, pessoa “especial, rara e fora do comum”.

Sim, Totó era especial e tinha um dom também especial, embora ainda não o soubesse.

Sua mãe acreditava ser ele um enviado de Deus. Já o via engajado na carreira sacerdotal, desde que começou a ajudar o pároco da pequena cidade em que moravam, como coroinha da igreja.  Essa foi a sua função até quase a idade adulta, mas, o destino já havia lhe preparado outro caminho para a sua redenção.

Totó passou a ser atormentado por um sonho. Não um sonho comum, pelo contrário, era um sonho revelador, mas muito estranho e assustador, tanto que não quis comentá-lo com ninguém, nem mesmo com o pároco, em confissão. Porém, esses sonhos tornaram-se cada vez mais frequentes e passou a lembrar-se de todos os detalhes, assim que acordava.


Ele sentia ser aquele um chamado, mas, não tinha consciência do risco que estaria correndo, nem das suas consequências. Isso não lhe abalou a fé. Após analisar os prós e os contras, convenceu-se, então, de que se tratava de uma missão e não perderia mais tempo em assumi-la.

Havia chegado o dia em que deveria cumprir o que lhe fora determinado em sonho. Levantou-se bem cedo e, sem mesmo tomar o seu desjejum, saiu de casa em direção ao cemitério da cidade.

Lá chegando dirigiu-se a um túmulo específico, tirou do bolso uma folha de papel em branco, com uma caneta, e depositou-os na lápide. Teve o cuidado de colocar uma pedra em cima da folha, certificando-se de que ela não seria levada pelo vento, e saiu do local, rapidamente.

A noite já ia alta e o relógio da igreja marcava quase meia noite, quando Totó passou em frente a ela, apressadamente, dirigindo-se, novamente, ao cemitério que ficava a uma quadra dali. Não havia ninguém na rua àquela hora, o que fez com que ele agradecesse aos céus por isso. Temia encontrar alguém e não ter como justificar sua necessidade de ir ao cemitério e entrar lá, sozinho, às doze badaladas do dia em que se comemorava o dia dos mortos.

Parou em frente ao portão de ferro, olhou para os lados para certificar-se de que não havia ninguém na rua, procurou no bolso as chaves, as quais havia surrupiado da igreja. Devido ao seu trabalho naquela paróquia, tinha acesso às chaves dos portões principal e lateral, bem como da capelinha que ficava dentro do cemitério. 

Aquele era o portão lateral e o preferiu, por medida de precaução, para não ser flagrado pelo vigia. Era um portão velho e, ao abri-lo, este rangeu, assustadoramente, fazendo com que seu coração acelerasse o ritmo.

Pássaros pretos sobrevoavam-lhe a cabeça, emitindo sons estridentes, como que antecipando mau agouro.

Tinha nas mãos uma pequena lanterna, mas, a noite era de lua cheia e decidiu não usá-la por ter uma visão bem nítida do local. Lembrou-se dos sonhos e sabia o que deveria fazer. Sentia-se guiado por algo ou alguém invisível que, de certa forma, o tranquilizava, pois iria precisar de um amparo espiritual e auto controle para poder cumprir a sua tarefa.

Ai começou a sua peregrinação. Vultos passavam por ele. Podia senti-los sussurrando-lhe aos ouvidos frases desconexas, outras vezes eram risos, gargalhadas, xingamentos.

Chegou a ter visões imaginárias de fantasmas, que tentavam barrar-lhe a passagem, mas, que sumiam à medida em que se aproximava deles. Totó suava frio. Por vezes tropeçou e caiu. Teve a nítida impressão de que havia sido empurrado. Ao tentar levantar-se, uma força estranha o impediu, mas, usou de toda a sua coragem, fé e determinação, como também a ajuda espiritual da entidade de luz que o acompanhava. Não soube precisar quanto tempo levou para chegar ao seu destino, sofrendo todo o tipo de entrave que tentava impedi-lo de alcançar o seu objetivo.

E lá estava ele agora, diante do túmulo que havia visitado pela manhã. Era de um médico famoso, muito respeitado pelos antigos habitantes da cidade, e conhecido como curandeiro ou milagreiro. Essa alcunha lhe fora atribuida porque não havia pelo menos uma pessoa de cada família, naquela cidade, que não houvesse sido curada por ele, fosse qual fosse o tipo e grau da enfermidade.

Totó morava numa pequena cidade do vale do paraíba. A saúde era muito precária e muitas crianças e idosos iam a óbito por não terem acesso à assistência médica, por mais simples que fosse a doença que lhes acometiam.

O Dr. Ciro, após muitos anos da sua morte, era ainda lembrado pelos moradores antigos, que tiveram relatos de seus avós, das curas realizadas pelo médico. Ele tinha uma história de vida reconhecida e evidenciada pelo desapego, tanto da família quanto dos bens aos quais renunciou para se dedicar a ajudar os menos favorecidos.

Totó sentiu a presença do falecido médico e chegou a ver o seu espectro, mas não teve medo nem receio. Sabia que dele receberia as instruções pelas quais estava ali.

Totó, então, viu um facho de luz que iluminava exatamente o local onde havia deixado a folha em branco e lá estava ela, embaixo da mesma pedra, no mesmo lugar.

Notou, porém, que a escrita era totalmente ilegível e, aparentemente, indecifrável, mas, Totó, inexplicavelmente, a leu, iluminado ainda por aquela luz, como se fosse escrita da maneira mais simples possível, porque somente ele poderia ter acesso a ela.

Era uma oração, muito forte, de poder de cura, e embaixo haviam instruções, as quais deveriam ser seguidas ao pé da letra, correndo o risco de comprometer a sua própria vida por ela.

Totó tomou ciência da seriedade daquele compromisso e todas as suas consequências, caso não fossem cumpridos, à risca, todos os passos.

Sim, Totó foi o escolhido para uma difícil tarefa, porque era uma pessoa do bem, que tinha o dom da caridade e agora teria também o poder da cura espiritual para ajudar os necessitados.

Seria essa a sua missão de vida, mas, teria, ainda, que passar por uma provação naquela noite. Já havia enfrentado e superado a primeira etapa e agora se preparava para a segunda e mais difícil delas, a prova de fogo, para selar aquele pacto sinistro.

Totó teria que retomar o caminho de volta, porém, não podia dar as costas para o túmulo em questão. Teria que caminhar até o portão por onde entrou, andando de costas.

Foi a pior prova a que foi submetido pois, a cada passo que dava, como que em pesadelo, via covas se abrindo atrás de si. Tinha pouco espaço para passar entre elas e muito risco de cair dentro de uma delas. Isso poderia ocorrer e, se de fato caísse, seria o seu fim. Sim, ele sabia disso, estava escrito na folha de papel que levava nas mãos.

Das covas, erguiam-se enormes línguas de fogo que cegavam-lhe os olhos. O mundo parecia estar desmoronando sobre seus pés, e por vezes se desequilibrava. Nessas horas, parava, respirava fundo, se controlava e  prosseguia a caminhada até que, finalmente, alcançou o portão lateral por onde havia entrado.
 
Fechou o portão atrás de si e respirou aliviado. Tudo havia ficado para trás.

 Agora teria início uma nova etapa da sua vida, aquela pela qual tinha se comprometido a viver, de corpo e alma.
Totó teve que mudar totalmente a sua rotina e não foi fácil incutir nas pessoas o seu conceito de cura.

Saiu de casa, deixando sua mãe contrariada e, sem o apoio dos irmãos, buscou ajuda em um centro de atendimento de apoio aos necessitados e carentes e lá se instalou.

Assim, foi colocando em prática o poder de cura, através da oração recebida do espírito do grande médico, a qual carregava no pescoço, como relicário.

Foram inúmeras as pessoas que se beneficiaram da bondade, altruísmo, solidariedade e humildade de Totó. Sua fama atravessou fronteiras e muitas pessoas de cidades vizinhas, até mesmo de outros Estados, formavam filas para conseguir com ele o remédio para seus males.

Para essas pessoas foram construídas pequenas casas, tipo alojamentos, para que pudessem fazer o tratamento necessário ou mesmo passar a noite e poderem viajar no dia seguinte mais descansados.

Com seu carisma e poder de perdão reconquistou sua família, que passou a respeitá-lo como pessoa e instrumento utilizado por Deus para levar conforto àqueles que sofriam de algum mal. 

Foram anos de bem-sucedidos procedimentos de cura e, assim como o Dr. Ciro, Totó conquistou a confiança dos moradores da cidade, que propagaram o seu feito e, então, ele pode cumprir sua missão.

Totó também se tornou uma lenda e sua história tornou-se conhecida porque foi revelada pouco antes da sua morte, mas, levou com ele o segredo da cura.

A oração que carregava consigo, no relicário pendurado no seu pescoço, foi com ele enterrada, conforme sua última vontade.

Assim o fizeram, pois ninguém sabia traduzir ao menos uma palavra do que estava escrito naquele papel.

Após seu falecimento, não se soube notícias de outra pessoa que tivesse herdado seus poderes...talvez pelos desafios a que a fé a submeteria.  

 
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Mistérios são fenômenos que ocorrem sem que se saibam as causas e não se podem explicar.

Essa história foi contada pela minha mãe e, segundo ela, minha avó foi uma das pessoas curadas pelo Totó, que era seu tio.







 
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Lucia Moraës
Enviado por Lucia Moraës em 09/12/2016
Reeditado em 18/10/2021
Código do texto: T5847948
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