Um Dia a Mais Com as Orquídeas

Estando eu sob sono profundo alguém bateu à porta. Era a Morte. A Morte com olhos profundos e perversos. Caminhou a passos calmos pela casa enquanto sua ferramenta cortante decepava o vento frio que adentrava as janelas e apagava as velas que eu havia deixado acesa após a última reza feita, a que apredi quando menina.

Sentou-se à mesa como se proprietária de tudo ali fosse, comeu o restante das sobras no prato e resmungou no silêncio conivente com sua ousadia. Então, pude ver sua calma solícita e obscura através dos raios do luar refletidos na jarra de vidro sobre o tapete ao lado da cama. Feia Morte com suas pequenas orelhas pontiagudas escondidas dentro do capuz negro. Fora hostil e irreverente despertando-me.

- Saia da cama e vista-se! - disse-me ela. E eu n'um tanto de medo e horror respondi.

- Deixe-me só e prometo não dar trabalho que te canse, temida senhora.

- Levante-se e siga-me.- disse ela. Levantei-me e caminhamos ao redor do lago das orquídeas. Logo paramos a olhar o penhasco. Gostava de sentar-me ali à noite e observar as montanhas enluaradas, tinha sonhado um dia estudar as estrelas... Esqueci-me dos sonhos após a saida de casa para enfrentar o inferno diário do mundo.

- Por que te incomoda a vida? Disse ela cuspindo na relva. Respondi:

- Por ter ficado para trás no tempo e tê-lo visto se arrastar. Os dias passam e nem os vejo.

- Empresto a ti a ferramenta ou preferes atirar-te do penhasco? - Disse ela. E eu repondi de imediato:

- Não a entendo claramente. Ela retrucou:

- Tomando-me a ferramenta teu sofrer acaba?

Respondi-lhe:

- O que pensas que podes fazer a mim se já não temo nada? Mata-me e apenas silenciarei. Podias tirar-me a vida durante o sono! Não te achas por demais cruel? A feia morte recuou até a beira do penhasco e persistiu:

- O que pensas do tempo, o que nele pode te incomodar? Desde que morri até a presente data o tempo também passou. Não parou! Após tua morte o tempo ainda passará. Não pense que cessará. Então espera tua vez no tempo, saiba que o tempo não é a razão da dor que te aflige. O amor acaso se parece comigo, mulher?

Fiquei ouvindo seus dentes rangerem. Realmente o amor de nada se parecia com ela, temerosa e hostil; um vulto com alma? Não. Era apenas um vulto sem alma. Mas minha vida ainda luzia de manhã e alcançava as planícies e serras, ria o riso das crianças...

Olhei seus negros olhos pensando em dizer tudo o que pensava à ela que despediu-se caindo do penhasco enquanto gritava:

- Adeus!

Virei-me e ví um anjo sentado sobre o telhado da casa, entendi que precisava apenas esperar. Que o tempo nunca para em nenhuma circunstância, e que eu não mais queria correr, deveria saber esperar minha vez para viver enquanto a lua dourava uma lágrima nítida em meu rosto vivo e frio.

Corina Sátiro
Enviado por Corina Sátiro em 04/12/2017
Reeditado em 04/12/2017
Código do texto: T6190116
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