ANTES UM RETORNO

Começo no emprego na segunda. Daqui a dois dias. Tenho este sábado de expectativa. Pego o ônibus Jardim Mirian. Quero me despedir. Chego para me despedir. Levo a câmera. Percorro a avenida Yervant. Ela é tão comprida. Acho que termina em lugar nenhum.

Não me dei conta na hora. Passei por dezenas de caixas d`água expostas ao relento e tênis pendurados na fiação dos postes. Reparei a profusão de portões de ferro fechados por correntes enferrujadas. Poderia ter fotografado. Agora está muito escuro. Esta miséria silenciosa tem um segredo, por isso é tão atraente. Onze horas da noite. Retorno à árvore sagrada. O povo dorme. No quintal de uma casa alguém pendurou gaiolas vazias. Soltaram os passarinhos. Neste momento escuto um grito.

O grito não vem de um lugar determinado. Um grito somente. Paro de sonhar. Você não queria isto? Ser o espectador de um esconderijo noturno criado pelos irmãos da Vila Joaniza? Alguém me puxa pelo ombro, um homem de terno bege esburacado, arregala os olhos e pergunta:

- Você não é o filho caçula do seu João, o borracheiro?

Saio correndo. Desço o barranco. Paro. Entro em uma viela à esquerda. Quem era o sujeito? Alguém que se confundiu. Eu era o filho caçula do seu João, o borracheiro. Melhor não explicar a intenção das fotografias. Mas não entendi o grito. E aquela escuridão?

O lugar em que finalmente chego é um buraco de luz. Estou perdido. Vejo longe um jumento branco. O animal carrega duas crianças sobre o lombo.

Tento justificar a imagem. É somente um jumento passeando. Nada de extraordinário. Gatos não se reproduzem de madrugada?

O quadrúpede vira-se para mim com os seus olhos de cego e penso: “Siga o cheiro”.

Siga o cheiro. Sigo um cheiro de vela. Ele preenche o ambiente. Mais forte à esquerda. Passo por um muro de tijolos aparentes e o que cheira é uma capelinha cercada por um jardim de flores amarelas. A grama reflete a luz de luminárias presas à pequena torre. O local se diferencia da pobreza da região.

Entro e ali está o cheiro. Velas rodeiam o corpo da adolescente. Era uma adolescente. Suicídio. Dez pessoas examinam a morta. Outras pessoas estão sentadas nos bancos. Um homem calvo alisa a própria nuca repetidamente. Mal conversam. Não choram, não estranham a minha presença.

O corpo da adolescente está deitado sobre uma mesa. Alguém questiona a demora do IML. O rabecão levará a menina?

Não é preciso o atestado de óbito? Quem cuida disso? – indagam.Acho que é o padrinho.

O veículo chega e manobra no jardim. Avança, recua, bate a traseira nos degraus do prédio e estaciona em frente à capela.

Os funcionários do IML trazem uma banheira de plástico branco, estreita, comprida e encardida. Ali depositam o cadáver da garota. Ela usa um short azul e sutiã. Suicidou-se com pouca roupa. Ouço as explicações:

- Jogou-se?

- Morreu?

- Morreu caindo tão baixo?

- Bateu a cabeça.

Outros funcionários estacionam melhor o veículo e abrem as portas do IML. O IML estava dentro da viatura. Um espaço para seis banheiras. Cinco estão preenchidas. A banheira da menina, a gaveta da morta, entrará no encaixe inferior direito.A morte se organiza dentro de mim.

Observo as gavetas brancas, os receptáculos e os pés dos defuntos. Tiraram as meias. Não é possível definir o sexo dos mortos pelo exame dos dedos. Aparentam serem pés de homens. O resto nem quero saber? Se tinham braços, cabeças. Conto cinco gavetas brancas, dez pés, cinquenta dedos. Juntaram dois pés femininos para a lotação.

Os amigos e parentes saem da capela. Identifico a mãe. A única que chorava.

Sento em um banco da capela. Gostaria de rezar pela menina. Ninguém pode corromper a própria vida em sua continuidade inexorável rumo à velhice do corpo. Os suicidas desafiam a natureza, as leis do céu e dos homens...a pulsação geral do mundo, a descarga.

Acho que a menina não quis desafiar ninguém. Sinto não ter sido isso. Havia outro objetivo em seu suicídio. Nessa lonjura de mundo Deus se encontra em um nível vibratório diferente da vibração do planeta. Não percebem, é logo aqui, onde ele se manifesta intensamente. A menina quis alcança-lo de um modo obtuso. Confundiu-se. Suicídios não sintonizam o Onipotente.

Eu não vivo aqui e, por isso, o sismo do altíssimo desloca-me, trepida o meu corpo sem me prejudicar. Somente eu sei que nas escadarias, nos becos impregnados de lodo, ele se torna mais perceptível.

Examino o altar. O manto branco que o cobria era liso e brilhante. A igreja católica realmente não dispensa a seda e o gesso das imagens dos santos.

Abro a porta da capela, saio. Já amanheceu e o bairro não existe mais. Restou somente uma ampla várzea rodeada por vinte casebres e atrás de cada casebre uma pequena horta.

Dois meninos magricelas correm e trazem um fedor de esterco. O cheiro do bairro há cem anos.

Vejo um homem sacrificando um porco. Faz um século que ele tenta matar o animal a pauladas. Ao lado do algoz, um menino assiste o flagelo. “Este bicho não morre!” O homem comenta. “Não morre por causa da pena deste moleque! Ele sente dó e não tira os olhos”.

O homem enfia um facão na garganta do suíno. “Não sabe matar”. Comenta outro homem. O sangue escorre pela lama do chiqueiro. A ferida se esgarça. O porco grita.

Ontem escutei o mesmo grito. Humano.

Estão sacrificando um homem não um porco. E há cem anos ele se esforça para que sua existência prevaleça. O algoz enfia o facão. O metal novamente atravessa a garganta do animal. O homem guincha e grita. Grita. Aqui. Nesta periferia.

TRECHO DO LIVRO: DEUS, A FERIDA E A PERIFERIA (já exposto na Usina de Letras)

Paulo Fontenelle de Araujo
Enviado por Paulo Fontenelle de Araujo em 19/01/2018
Reeditado em 11/02/2018
Código do texto: T6230186
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