Asmodeus - parte 2

Joana acordara no meio da noite com o sabor de sangue em sua boca. Suas mãos suadas e trêmulas. Talvez não resistisse ao inverno. A comida era escassa, e cada visita à cidade era um desafio de sobrevivência que a levava ao limite do seu corpo.

Acompanhada por seu filho de 8 anos, Natanael. Os dois cruzavam de um lado a outro do que antes era o Brasil. Antes de tudo... naquela especificamente, as coisas tornaram a complicar para ambos. A madeira guardada ficou sobremaneira úmida, sem fogueira para aquecê-los.

A comida que arranjaram atravessando algumas cidades interioranas se resumia a um enlatado de legumes, uma bandeja de morangos não podres, e um salame ainda comestível. Misturaram os ingredientes na velha panela e comeram aquele ensopado inusitado. Natanael, após comer, adormeceu. A sua mãe faria guarda por algumas horas, no entanto, o cansaço a venceu e logo adormecera junto do filho, mas algo na mata os espreitavam.

Durante semanas os dois correram por vias cheias de carros abandonados ou cheios de restos humanos, sobras das refeições dos bandos de carniceiros que caçavam. No início era fácil se desvencilhar deles, lerdos e não inteligentes, agiam por instinto contra tudo que se movia.

Aparentemente inofensivos à primeira vista, as criaturas mudaram o comportamento. Agora caçavam em bando e os corpos criaram força e velocidade. Escapar de um confronto direto se tornou um prêmio. Aos poucos os acampamentos de sobreviventes caíram. O grupo de Joana e Natanael foi atacado durante o dia, enquanto almoçavam, ou algo parecido a isso. Ela viu a irmã e o cunhado serem devorados. E Natanael ainda não superara a morte de Alessandra, filha de Rogério, líder do acampamento.

Uma besta carniceira cortou a lona da barraca, atingindo em cheio com sua boca demoníaca o infante pescoço de Ale, como chamava o menino a amiguinha. Sangue jorrou. Joana correu para socorrer o filho, no meio da confusão, de relance, viu Rogério lutando contra o monstro que arrancara tufos de carne da filha.

Se não fosse o encontro repentino com o sádico Napoleão, militar que desertou das forças de controle epidêmico, os dois morreriam naquela tentativa de fuga. Atraído pela fumaça que subia da montanha, o soldado seguiu os rastros do acampamento sem dificuldade. Com a MP5 ele alvejou alguns carniceiros que se aproximavam da mãe e seu filho.

O herói, entretanto, se mostraria como escória. Depois da fuga, o militar cobrou a dívida de vida, de sangue. O corpo da jovem mulher era o prêmio por sua bravura. Enquanto passavam por uma BR, o homem a quis tomar com força. Joana se debelou, e Natanael tentava o impedir de alguma forma.

Um soco lhe acertou em cheio o rosto, as vistas escureceram, Joana se esforçou para não perder os sentidos. Pesadelo. Ela sentia o zíper da calça sendo aberto, sentia as mãos de Napoleão sobre seu corpo. Ele falava coisas terríveis. O ato seria consumado se um grupo de carniceiros não tivesse assobiado. A caça começara.

O militar deixou a insanidade de lado e correu. Deixou para trás Joana e seu filho. Ainda atordoada, se levantou do ataque e puxou Natanael para algum lugar. Não sabia discernir para qual. O objetivo era se esconder do grupo caçador. Ao longe ela ouvia tiros e gritos. Era Napoleão.

A intuição dela soou. Algum carro seria o refúgio dela e do filho. Viram um Doblò de vidros peliculados com a porta aberta, apressados eles entraram e se trancaram. A adrenalina fazia seu corpo tremer. Será que ali seria o fim?

Ou um milagre aconteceria?

O menino pediu por água. A mãe o reprimiu com um som de silêncio. Depois procurariam por mantimentos. Naquele momento, todavia, os grunhidos das criaturas pareciam circundar o carro. Uns grasnavam, outros assobiavam de um jeito maléfico. Era uma orquestra saída do inferno.

As horas passaram e os carniceiros também. Dentro do carro o calor sufocava mãe e fiho. Saíram no cair da tarde, aliviados, com sede e fome. O jeito era caminhar para achar outro lugar para descansar antes de chorar o luto pela família e amigos que perderam.

Joana estava atenta e viu a silhueta de um homem que carregava uma metralhadora. Temeu que fosse Napoleão. Boa sorte. A silhueta logo entrou na mata e desapareceu. O menino Natanael tinha sede e resmungou para a mãe que não tomaram nada desde a fuga. Ela assentiu. Caminharam cidade adentro e entraram em um supermercado. Descobriram ali certa fartura. Havia em algumas prateleiras biscoitos, doces, grãos, e na seção de hortifrúti, ovos, legumes e frutas ainda não podres.

Estavam abastecidos e tranquilos por algum tempo. Exceto por uma coisa: a silhueta de um homem voltara a aparecer.