Na penumbra

O som estava muito alto. Não consegui mais ouvir qualquer coisa que não fosse aquela música trance psicodélica. Senti minha cabeça doer, talvez pelo barulho, ou até as duas cervejas que tomei. Queria apenas sair dali.

Cuidadosamente passei pela sala em passos estratégicos para não pisar em duas jovens bêbadas e sujas deitadas no carpete. Reconheci uma delas. Bianca, a garota mais desejada da faculdade, para muitos sim, no entanto, para mim nem um pouco, muito menos agora.

Próximo à porta, muitas pessoas dançavam de forma vergonhosa e vulgar, me fazendo sentir nojo do que os meus olhos estavam a ver. Cruzei com outros casais à frente, pareciam estarem num ato sexual alucinante ao som de sintetizadores. Consegui sair e respirar um ar que não contivesse o odor de cerveja quente e vômito.

Parei e me questionei no porque de estar ali.

Comemorar meus dezoito anos numa festa de veteranos seria uma boa ideia? Era tarde demais para se pensar nisso. Olhei meu relógio, era quase meia noite e eu só queria ir embora.

Procurei minha carona ao redor da casa, e não a encontrei. Perguntei a dois caras na beira da piscina se haviam visto o meu amigo, os dois se entreolharam, riram e falaram coisas desconexas. Deveriam estar drogados ou sobre efeitos do álcool, sei lá, continuei apenas a minha procura.

Quando eu já estava desistindo, olhei para a janela do primeiro andar, e lá estava ele com uma moça o beijando e tirando sua roupa. “Ah droga, perdi a minha carona e agora terei que ir a pé para casa”, pensei enquanto via uma leve garoa cair naquela noite. A dor de cabeça aumentava, junto com ela senti uma sensação estranha subindo e descendo pelo meu corpo inteiro. Andei alguns passos até chegar num pequeno arbusto.

Vomitei muito, mas me recompus.

Precisava andar depressa enquanto ainda havia forças em mim.

A lua estava linda, cheia e brilhante, muito mais até do que a imagem que eu tinha desde criança, a qual eu olhava da janela do meu quarto. Lembro que pedi a meu pai um telescópio.

“Lua cheia, lendas, misticismos e mistérios”.

A dor voltou mais forte, tossi tão forte que cheguei a cuspir sangue. O que eu tinha? Tentei mais uma vez esquecer a minha situação. Tive medo de ir pela rodovia 66. Ouvi muitas histórias assustadoras sobre aquele lugar. Mas, não havia outro caminho de voltar para casa. Pelo horário, nada poderia acontecer, nada mesmo.

À medida que eu caminhava, a escuridão enlaçava-me num abraço. Ao meu redor havia apenas mata e árvores. O som das gotas de água caindo me tranquilizava um pouco. Minha roupa estava toda molhada, eu sentia ela se mesclar ao meu corpo. Três botões haviam saído, abrindo parte da minha camisa. De repente um calafrio subiu por minha espinha quando ouvi meu nome ser pronunciado.

Olhei para trás e não vi nada ou ninguém. Apressei meu passo, e pude ouvir mais próxima e nítida, uma voz a me chamar.

Fechei os olhos e respirei fundo, não havia o que temer, pelo menos não em minhas memórias, junto com o meu pai, que sempre me dizia para ser forte e enfrentar todos os meus medos.

Olhei novamente.

Desta vez, fitei meus olhos num corpo feminino que se aproximava, cada vez mais para perto de mim.

A chuva havia cessado de cair, e eu nem havia notado, minha atenção estava naquela figura próxima. Ela desarmou o guarda-chuva, e sorrindo me cumprimentou. Eu a conhecia, Helena Santiago, não tinha como esquecê-la. Senti uma forte atração por ela desde o dia em que a vi entrar na minha sala e sentar próxima a mim. Não falava muito, na verdade não falava com basicamente ninguém além de mim. Talvez fosse porque todos a achavam esquisita, mas eu não a via assim. Seria amor adolescente o que eu sentia? Talvez.

Helena estava com um longo vestido, branco como a névoa que se dissipava no ar, seus cabelos longos e negros cobriam parte dos seus ombros. Tinha olhos que penetravam profundamente minha alma, eu podia sentir, mas, o que eu mais queria sentir eram aqueles lábios vermelhos e intensos que acendiam o meu desejo. Como eu queria mordê-los.

Ela pediu para me acompanhar.

Disse que estava sozinha na festa e havia procurado alguém de confiança para acompanha-la, mas só encontrara pessoas ofendendo-a, e ainda alguns bêbados que tentaram tirar proveito dela. Quando me viu andando ao longe, correu ao meu encontro. Ouvi atentamente cada palavra dela. Peguei na mão dela e a conduzi à longa caminhada.

Helena era doce, meiga e sincera. À medida que andávamos, ela listou diversas qualidades minhas, coisas até que eu nunca tinha nem pensado. Eu sou uma pessoa forte sim, eu aprendi a ser, mas, ela via isso em mim.

Ela me estudava, era bem observadora, me assustava um pouco, mas, era só o tempero que fazia com que minha atração por ela aumentasse ainda mais. Eu a olhava e a desejava. Olhei para a estrada e notei que minha distração foi tanta, que não vi ter passado pela rodovia 66, a qual me dava muito medo.

Quando eu achei que estava tudo bem, aconteceu algo inesperado.

Ouvi um zumbido muito alto atravessar os meus ouvidos. Tentei a todo custo tapa-los com minhas mãos. Foi inútil. Caí de joelhos com fortes dores no estômago.

Lembro apenas de olhar para cima e ver a lua linda e cheia. Senti minha consciência ir desvanecendo e meu corpo ser levemente atraído ao chão lamacento. Em minha queda, acredito ter visto Helena na minha turva e escura visão.

Apaguei.

Acordei com o barulho de sirenes e ouvi burburinhos de muitas pessoas a conversar. Tive dificuldades de me levantar ou sequer abrir direito os meus olhos. Forcei a me por em pé, e o máximo que consegui foi erguer parte do meu tronco.

Muitas dores por todo o meu corpo, parecia que eu tinha apanhado de uma multidão de pessoas enraivecidas. Senti um cheiro forte, eu conhecia aquele odor, porém, minha mente não estava assimilando do que era até que olhei para minha barriga, e num susto agonizante pude constatar o que era.

Sangue, muito sangue impregnado em minhas roupas, que por sinal, estavam rasgadas. O que havia acontecido? De quem era todo o sangue? Não sei.

Vi policiais se aproximarem com armas apontando para mim, e não sei mais o que se procedeu, acho que apaguei, ou alguém bateu com força em minha nuca e eu desmaiei.

Lembro apenas que acordei aqui nessa sala branca e pequena.

Por dias, ou meses, talvez até anos estou nesse lugar, sozinha. Perdi a noção de tempo e não consigo lembrar-me daquele dia.

E Helena?

O que aconteceu com ela? Ninguém me disse nada, apenas fui jogada aqui.

Helena, onde está você e os seus mistérios? Lembro-me dos seus lábios vermelhos e intensos, que eu queria morder.

Gilberlan Santos
Enviado por Gilberlan Santos em 05/08/2018
Código do texto: T6410559
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